Claudia Jurberg
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Fabricação de moldes e manipulação de células para a geração dos biotecidos em laboratório (Foto: Divulgação) |
A biofabricação de tecidos humanos tridimensionais é o foco da professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Leandra Baptista, que criou uma startup em 2019 para o desenvolvimento desse método alternativo ao uso de animais de experimentação em ensaios pré-clínicos com testes de fármacos e medicina regenerativa.
Um dos alvos é o desenvolvimento de biotecidos de fígado, que são estruturas tridimensionais geradas a partir do cultivo de diferentes tipos de células hepáticas, organizadas de forma a reproduzir a arquitetura e as funções do fígado humano. A pesquisadora explica que os biotecidos hepáticos 3D são mais eficientes que os modelos animais porque mimetizam com maior fidelidade a fisiologia do fígado humano, incluindo funções metabólicas, enzimáticas e interações celulares. Isso resulta em dados mais translacionais, ou seja, com maior capacidade de prever como o organismo humano responderá a um determinado medicamento.
Ao contrário dos modelos bidimensionais convencionais, Baptista explica, os biotecidos 3D apresentam maior complexidade fisiológica. A tecnologia contribui para a tradução de respostas mais precisas e previsíveis em estudos de metabolismo, toxicidade e eficácia de novos fármacos. Em outras palavras, os biotecidos contribuem para a aproximação da realidade do organismo humano, reduzindo falhas em etapas clínicas e a necessidade de testes em animais na etapa pré-clínica.
"Modelos animais, apesar de historicamente utilizados, frequentemente falham em antecipar reações adversas ou a ineficácia de compostos, o que leva a retrabalho e perdas significativas na etapa clínica. Com os biotecidos, essa falha preditiva é reduzida, tornando o desenvolvimento de medicamentos mais seguro, eficiente e alinhado à realidade biológica humana", disse.
Segundo ela, o projeto encontra-se na fase de validação com o uso de medicamentos com toxicidade já conhecida de acordo com a lista da Food and Drug Administration. Os lotes produzidos estão passando por caracterização morfológica, expressão de biomarcadores e testes metabólicos.
"O biotecido de fígado poderá ser utilizado pela indústria em poucos meses. A nossa startup, a Gcell, está trabalhando para obter as certificações necessárias para o nosso laboratório atender a indústria. Já temos indústrias farmacêuticas, de biotecnologia e cosméticos interessadas nos biotecidos de fígado por conta da capacidade de avaliar hepatotoxicidade e metabolismo de compostos com precisão, o que torna esse modelo extremamente atrativo para setores que demandam testes de segurança e eficácia, especialmente em fases pré-clínicas", explica.
De acordo com a professora, a Gcell, apoiada pela FAPERJ, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep/MCTI), é considerada pioneira em território nacional no desenvolvimento desses biotecidos. No cenário internacional, há empresas consolidadas como a suíça InSphero, considerada o principal benchmarking, sendo especializada em esferoides para testes toxicológicos e metabólicos. No entanto, essas tecnologias possuem limitações de importação, alto custo logístico e aplicabilidade restrita a determinadas doenças, o que reforça a importância de soluções nacionais.
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Leandra Baptista: professora da UFRJ, ela criou startup em 2019 com foco na biofabricação de tecidos humanos tridimensionais (Foto: Divulgação) |
"O valor de venda de um biotecido pode variar conforme sua complexidade, composição celular e aplicação específica, mas com certeza representam uma economia significativa no contexto da pesquisa biomédica porque reduzem drasticamente a necessidade de retrabalho, aumentam a previsibilidade clínica e eliminam etapas regulatórias associadas à experimentação animal, como a submissão a comitês de ética específicos. Além disso, o uso de biotecidos permite identificar precocemente a toxicidade ou a ineficácia de compostos que, em modelos animais, falham tardiamente, representando perdas milionárias. Em outras palavras, o investimento inicial em biotecidos se traduz em economia real quando se considera o custo total do desenvolvimento de um novo fármaco. Mais do que uma alternativa ética e sustentável, os biotecidos estão se consolidando no mundo como uma estratégia economicamente inteligente e cientificamente avançada", acrescenta
Segundo Baptista, existem biotecidos desenvolvidos para diversos órgãos além do fígado. Entre os mais avançados estão os modelos de pele, coração, pulmão, rim, intestino, córnea, pâncreas e sistema nervoso central.
"Cada um desses modelos possui aplicações específicas. Por exemplo, biotecidos de pele são amplamente utilizados em testes dermatológicos e de cicatrização; os de coração são usados para estudar cardiotoxicidade; os de pulmão para modelar doenças respiratórias; e os de rim para triagem de nefrotoxicidade. Embora ainda estejam em constante aprimoramento, esses tecidos representam um avanço importante rumo a uma ciência mais humana, precisa e livre da dependência de modelos animais. A Gcell, além do biotecido de fígado, possui o biotecido de pulmão, de articulação e de gordura. Os biotecidos de articulação e de gordura são responsivos a estímulos inflamatórios, mimetizando doenças, como por exemplo a obesidade", destaca.
"O nosso biotecido contribui diretamente para o avanço da ciência alinhada aos princípios dos 3Rs (Reduzir, Refinar, Substituir) na questão do uso de animais de laboratório, promovendo uma transição segura e responsável. Além disso, fortalecer a capacidade nacional de produzir esse tipo de tecnologia eleva a autonomia científica e tecnológica do País, reduzindo a dependência de modelos importados. O biotecido também impulsiona a inovação farmacêutica ao reduzir custos associados a falhas em fases clínicas e ao aumentar a assertividade no desenvolvimento de novos medicamentos, tornando o processo mais eficiente, competitivo e humanizado", completa.