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Publicado em: 21/03/2024 | Atualizado em: 21/03/2024

Estudo decifra telegramas criptografados da expedição Moreira Cesar em Canudos

Paula Guatimosim

Na ilustração de Angelo Agostini para a Revista Dom Quixote, Moreira Cesar é o terceiro a partir da esquerda

Foi se dedicando ao estudo da marginália - anotações e comentários registrados pelos leitores nas margens das páginas dos livros - que a jornalista e escritora Cristiane Costa descobriu o que foi feito do corpo do coronel Moreira Cesar, morto na penúltima expedição militar enviada para atacar Antonio Conselheiro e seus seguidores em Canudos. Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, com pós-doutorado na Universidade da Califórnia, Cristiane foi repórter de várias editorias do Jornal do Brasil (JB), incluindo a de literatura (Caderno Ideias), atuou no mercado editorial após sair do JB, em 2001, até passar em concurso para a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde é professora de Jornalismo. 

Na pesquisa intitulada “Eu vejo teus erros”, iniciada há seis anos, Cristiane dedicou-se ao estudo da marginália de Dilermando de Assis em um exemplar de Os Sertões, de Euclides da Cunha, um clássico da literatura brasileira, publicado em 1902, no qual o autor dá tratamento jornalístico aos fatos da Guerra de Canudos. Amante da esposa de Euclides da Cunha, que foi até a casa dele disposto a “matar ou morrer”.  Dilermando sobreviveu aos cinco tiros disparados pelo escritor e usou sua habilidade de militar para se defender. Cunha, por sua vez, não resistiu aos ferimentos. 

No estudo, que conta com apoio da FAPERJ por meio do programa de Auxílio Básico à Pesquisa, Cristiane Costa escreveu o artigo em parceria com o doutor em Engenharia de Sistemas e Computação pelo Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ) e professor emérito da Seção de Engenharia de Computação do Instituto Militar de Engenharia, José Antonio M. Xexéo.

Movida pela curiosidade jornalística, Cristiane montou um verdadeiro quebra-cabeça a partir da obra de Euclides da Cunha, da marginália de Dilermando de Assis, da farta bibliografia e fontes documentais acerca da Guerra de Canudos - como a do general Tristão de Alencar Araripe - e memórias de combatentes. Com a ajuda de Xexéo, teve acesso às relíquias encontradas no Arquivo Histórico do Exército, como os telegramas até então sigilosos da Expedição Moreira Cesar.

A imagem mostra dois telegramas; no primeiro (esq.), o general Costallat afirma não ter entendido o conteúdo da mensagem; no segundo, diz já ter decifrado o telegrama (Imagens: Arquivo Histórico do Exército)

“A resposta sobre o que aconteceu com o corpo de Moreira César parecia estar para sempre perdida em uma das pastas de telegramas, quatro deles criptografados, guardadas no Arquivo Histórico do Exército, no Palácio Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Enquanto a correspondência trocada entre os militares isolados no front baiano e os oficiais do Ministério da Guerra ainda é facilmente legível, esses quatro telegramas sem data nem assinatura guardavam informações tidas como tão secretas que exigiam uma chave para serem decodificados, em poder apenas dos mais graduados oficiais da época”, dizem os autores do artigo intitulado “Segredos da Guerra de Canudos (1896-1897): Telegramas criptografados sobre o fracasso da expedição Moreira Cesar são finalmente decifrados”, publicado na Revista de História da Universidade de São Paulo (USP). 

A tecnologia desvendou as informações contidas nos telegramas sobre o fracasso da terceira expedição militar e o que aconteceu com o corpo de seu líder, o coronel Moreira César, enviado ao interior da Bahia para eliminar o líder religioso Antonio Conselheiro e o arraial de Canudos, que chegou a contar com 25 mil habitantes. Apenas a quarta expedição, comandada pelo general Artur Oscar, contando com mais de cinco mil homens e armamento pesado, conseguiu destruir o povoado em 5 de outubro de 1897.

Segundo descrito em Os Sertões, um dos últimos pronunciamentos de Moreira Cesar, pouco antes de morrer, ferido por duas balas na madrugada de 4 de março de 1897, foi ordenar um segundo ataque a Canudos, uma vez que, apesar das baixas no dia anterior, da fome e da sede que tomavam conta do acampamento, a maior parte dos soldados estava apta para o combate e havia munição suficiente. Mas o que se seguiu foi bem pior do que uma retirada estratégica. “É tempo de murici, cada um cuide de si”, teria sido a ordem do novo comandante, o coronel Pedro Nunes Tamarindo, assim que o dia amanheceu.

Consta que a enorme tropa que prometia tomar o arraial, formada por cerca de 1.200 homens, fugiu desabalada, deixando 13 oficiais insepultos e soldados feridos ao longo do caminho, assim como uma preciosa munição para os seguidores de Antonio Conselheiro. Corpos dos militares abandonados seriam encontrados, três meses depois, pelos integrantes da quarta expedição, numa das cenas mais macabras descritas por Euclides da Cunha em Os Sertões. Surpreendentemente, Moreira César não estava entre eles. Tamarindo, sim.

"HAVENDO LUCTA CORPO A CORPO COMPLETA DESORDEM ARTILHARIA APEZAR TIROS", dizia o terceiro telegrama criptografado (acima)

A dinâmica das correspondências

O estudo considera que embora permitisse que mensagens fossem trocadas rapidamente entre oficiais que lutavam no sertão nordestino e os altos comandantes sediados em Salvador e no Rio de Janeiro, o telégrafo tinha o sério inconveniente de deixar o conteúdo da mensagem completamente exposto, permitindo que as informações fossem lidas e eventualmente vazadas. Por isso, a fim de garantir a confidencialidade de informações sensíveis, eram estabelecidas chaves compartilhadas entre o remetente e o destinatário. “Mas nem sempre essas chaves eram encontradas, gerando trapalhadas, como na troca de telegramas no dia 24 de março de 1897, 20 dias após a morte de Moreira César, entre dois generais: Arthur Oscar de Andrada Guimarães, até então comandante do Segundo Distrito Militar, com sede em Recife, enviado às pressas ao sertão baiano para liderar uma nova expedição a Canudos; e o general Bibiano Sérgio Macedo de Fontoura Costallat, ajudante-general do Exército, sediado no Rio de Janeiro”.

Em meio a um movimento de potências europeias interessadas na restauração da monarquia no Brasil, a teoria da conspiração restauradora criou uma cortina de fumaça para o fracasso da terceira expedição contra Canudos empreendida por Moreira Cesar. Uma onda de notícias falsas dava conta que os jagunços de Antonio Conselheiro recebiam apoio de monarquias europeias que enviavam armas ultramodernas, carregamentos de balas explosivas jamais vistas no país. Caso fossem vazados na época, os telegramas enviados pelos sobreviventes da expedição Moreira César poderiam comprometer a narrativa conspiratória, apontando erros táticos que explicariam de forma menos delirante o fracasso de uma legião originalmente formada por 1.300 soldados, dos quais 253 morreram, 120 foram feridos e 17 dados como desaparecidos, segundo consta no livro Canudos: Subsídios Para A Sua Reavaliação Histórica, de José Augusto Sampaio Neto.

Cristiane Costa: a jornalista montou um quebra-cabeça a partir de diversas fontes para desvendar o mistério que cercava o destino do corpo do coronel Moreira Cesar (Foto: Arquivo pessoal)

Além do coronel Moreira César, mais 12 oficiais morreram durante a terceira expedição. O estudo descreve que num lance de excessiva autoconfiança, o comandante Moreira Cesar afirmou que pretendia almoçar em Canudos, forçando a tropa a investir imediatamente após uma caminhada exaustiva, desidratada e sem alimentação desde a véspera. Na pressa, mais de mil soldados entraram em Canudos, como quem penetra numa armadilha, descreve Euclides da Cunha em Os Sertões. Desnorteados nas vielas estreitas, os soldados se perdiam, e, sem rumo certo, os grupos cada vez mais dispersos iam se dissolvendo em combatentes isolados, alvos fáceis dos homens de Antonio Conselheiro. Após cinco horas de uma luta inglória, a tropa naturalmente começou a recuar, repelida pelos jagunços.

O plano de retirada transformou-se em fuga desordenada, como retrata Euclides da Cunha: “Oitocentos homens desapareciam em fuga, abandonando as espingardas; arriando as padiolas, em que se estorciam feridos: jogando fora as peças de equipamento; desarmando-se; desapertando os cinturões, para a carreira desafogada; e correndo, correndo ao acaso, correndo em grupos, em bandos erradios, correndo pelas estradas e pelas trilhas que as recortam, correndo para o recesso das caatingas, tontos, apavorados, sem chefes. Entre os fardos atirados à beira do caminho ficara, logo ao desencadear-se o pânico — tristíssimo pormenor! — o cadáver do comandante. Não o defenderam”.

Apesar de a história dar conta de que o ordenança cabo Roque teria protegido o corpo de Moreira Cesar, conhecido por sua crueldade e destempero (atribuído à época à epilepsia), testemunhas que sobreviveram à Guerra, como duas moradoras de Canudos presas, informam que Conselheiro proibiu expressamente que enterrassem o corpo do coronel e que este realmente foi devorado pelos urubus. Em Os Sertões, Euclides da Cunha fala que os fanáticos o incineraram, mas num trova encontrada numa trincheira dos jagunços e recolhida por um militar dizia que Moreira Cesar foi a Canudos “dar carne aos urubus”.  De acordo com o responsável por datilografar a documentação que serviria para contar, do ponto de vista da História Militar, o fim de Moreira Cesar “É triste, mas é verdade – o coronel Antonio Moreira Cesar, depois de morto, foi devorado pelos urubus!!!”  

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