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Publicado em: 28/09/2023 | Atualizado em: 28/09/2023

Estudo do Lasa/UFRJ resulta na primeira bioclimatologia do estresse térmico da América do Sul

Paula Guatimosim

O estresse térmico leva o corpo a perder água e sais minerais em excesso, fenômeno conhecido como intermação (Foto: Freepik)

O Brasil vivenciou na última semana do inverno deste ano uma onda de calor sem precedentes, com diversas cidades registrando temperaturas acima dos 40 °C. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o inverno deste ano foi um dos mais quentes desde 1961. A primavera, que teve início dia 23 de setembro, deve continuar quente, o que levou o Inmet a emitir, na véspera da nova estação, um alerta de "grande perigo", devido a temperaturas acima da média em 11 estados brasileiros e no Distrito Federal. A elevação generalizada da temperatura na Terra é decorrente das mudanças climáticas, que vêm provocando eventos cada vez mais extremos. Calor em excesso, seca, assim como tempestades, alagamentos e inundações, como ocorreram no Rio Grande do Sul, passarão a ser cada vez mais frequentes.

A Bioclimatologia é uma subárea da meteorologia que estuda a interação do clima com os seres vivos (ser humano, animais e plantas). A estimativa das consequências do estresse térmico sobre a população considera o UTCI (Índice de Controle Térmico Universal), com base na capacidade humana de regulação termofisiológica e que leva em consideração não só a temperatura do ar, mas a umidade, radiação solar e vento. O estresse térmico leva o corpo a perder água e sais minerais em excesso, fenômeno conhecido como intermação. Os sintomas comuns decorrentes da hipertermia são cansaço, apatia, tonturas e enjoo. A frequência cardíaca e a pressão arterial aumentam, como um mecanismo compensatório, podendo evoluir para um choque térmico, confusão mental, convulsões, e num quadro extremo para a falência de múltiplos órgãos e óbito. Idosos, crianças e pessoas com comorbidades são os mais suscetíveis.

A figura mostra a porcentagem de horas de estresse térmico na América do Sul

Um estudo inédito desenvolvido no Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa) do Departamento de Meteorologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), intitulado Heat stress in South America over the last four decades: a bioclimatic analysis, realizou a primeira bioclimatologia do estresse térmico das últimas quatro décadas abrangendo toda a América do Sul. Publicado hoje na revista científica Theoretical and Applied Climatology, o artigo revela que o número anual de horas sob estresse térmico aumentou significativamente em todas as zonas climáticas do continente sul americano durante o período de 1979 a 2020. O aumento foi mais pronunciado a partir da década do ano 2000.

Segundo Renata Libonati, professora de Departamento de Meteorologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do estudo, a motivação para a realização da pesquisa foi a carência de dados históricos sobre estresse térmico a América do Sul, ao contrário a América do Norte e Europa. “Existe uma falsa impressão de que no continente Sul Americano o calor é normal, mas, desde 2000, estamos convivendo com índices de estresse térmico acima do suportável e recomendado”, alerta a pesquisadora. De acordo com ela, a pesquisa abrangeu cidades de todos os países da América do Sul, considerando suas latitudes e longitudes distintas e conformações que resultam em diferentes climas. O resultado mostra que a tendência de aumento do estresse térmico é comum a toda a região e por isso ações de enfrentamento precisam ser desenvolvidas.

Das 31 cidades analisadas na América do Sul, foram selecionadas 13 no Brasil, com população de mais de um milhão de habitantes. Somadas as populações dessas 13 cidades, conclui-se que quase 40 milhões de pessoas estão expostas atualmente a condições de calor extremo, que pode ultrapassar 20 dias por ano. “Mas esse número de brasileiros expostos anualmente ao estresse térmico é muito maior, porque não há barreiras entre as grandes e as pequenas cidades”, ressalta a pesquisadora. Ao longo das quatro décadas estudadas, foi identificado um aumento médio de 13 horas por ano em Fortaleza e Goiânia, de 8 a 10 horas ao ano em Brasília, Campinas, Manaus e Belo Horizonte. Em São Paulo e Rio de Janeiro a tendência foi de 6 horas em estresse térmico a mais a cada ano, enquanto em Belém e Curitiba esse valor foi de 4 horas/ano e 2 horas/ano, respectivamente.

A pesquisadora lembra que o aumento generalizado da temperatura bem como da frequência e magnitude de episódios de extremo calor são uma clara assinatura das mudanças climáticas impostas pela ação humana. As altas temperaturas, quando acompanhadas por déficits de chuva, culminam com frequência em períodos de seca severa. Ondas de calor e secas, apesar de apresentarem assinaturas temporais e espaciais distintas, são fenômenos que se encontram e em determinadas situações promovem uma retroalimentação. Assim, períodos de seca podem levar à ocorrência e/ou amplificação dos níveis de temperatura e vice-versa, gerando os chamados eventos concorrentes de seca e onda de calor com inúmeros e variados impactos naturais e socioeconômicos de dimensões muitas vezes devastadoras e catastróficas.

O artigo do LASA/UFRJ Recent increasing frequency of compound summer drought and heatwaves in Southeast Brazil, publicado na revista científica Environmental Research Letters,  revelou  que os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais têm registrado um aumento significativo, entre 50% e 100%, do número de eventos concorrentes de seca e onda de calor nas últimas 4 décadas, incluindo períodos recentes com a ocorrência de seca e onda de calor de magnitudes excepcionais. No ano passado, uma avaliação detalhada destas condições excepcionais gerou outro artigo, dos mesmos autores, publicado na revista Scientific Reports sob o título The influence of soil dry-out on the record-breaking hot 2013/2014 summer in Southeast Brazil. O estudo demonstrou o papel preponderante das condições preexistentes de seca ao longo do Sudeste do Brasil no aumento da temperatura para níveis nunca antes vistos num passado recente.

Renata Libonati: para a pesquisadora é preciso considerar o calor extremo como um desastre natural e um fator determinante para a saúde da população

Estas condições excepcionais foram responsáveis pela indução de níveis severos de stress térmico nas regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba ao longo de todo o verão de 2013/2014. Estima-se que este evento tenha levado a um acréscimo acentuado do número de mortes na população residente destas três regiões metropolitanas, numa situação idêntica à verificada durante a onda de calor de fevereiro de 2010 na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, documentada no artigo Characterizing the atmospheric conditions during the 2010 heatwave in Rio de Janeiro marked by excessive mortality rates, objeto de reportagem no boletim Faperj em 2018. Neste episódio, com duração de oito dias, estima-se que tenham morrido mais de 730 pessoas com causa de morte relacionada com o calor excessivo e prolongado.

A meteorologista e Cientista do Nosso Estado pela Fundação atribui à FAPERJ a viabilização da pesquisa inédita da bioclimatologia da América do Sul. O estudo também foi contemplado no edital de Apoio a Projetos Temáticos no Estado do Rio de Janeiro; recebeu bolsa de Treinamento e Capacitação Técnica (TCT) para Vitor Miranda, primeiro autor do artigo; bolsa de Pós-Doutorado Nota 10 para o segundo autor do artigo, Djacinto Aparecido dos Santos; e Jovem Pesquisador da FAPERJ para Leonardo Peres. 

"O trabalho é de grande importância para a sociedade, visto que com um aumento da frequência de eventos extremos (tais como as ondas de calor) o corpo humano acaba por ter de se adaptar e, por isso, acaba sofrendo com o estresse térmico. O estudo é pioneiro em analisar o comportamento do estresse térmico sob uma perspectiva climatológica e continental, o que é muito importante para as questões de saúde pública como um todo”, considera Vitor Miranda. Grato à FAPERJ pela concessão da bolsa de TCT, ele considera que o estudo foi muito importante para a sua formação, pois permitiu uma melhor compreensão sobre os efeitos dos extremos de calor sob a população, visando uma melhor abordagem temporal e espacial.

Vitor Miranda: para o primeiro autor do artigo, o estudo foi muito importante para a sua formação

Renata Libonati, eleita pela empresa 3M uma das 25 mulheres cientistas na América Latina 2023 que estão mudando o mundo por meio da ciência, por seus estudos sobre prevenção de incêndios florestais e queimadas por meio de satélite, aponta as mudanças climáticas como as principais responsáveis pelo aumento da frequência e intensidade destes eventos extremos compostos de secas e ondas de calor. Ela ressalta que este ano, este tipo de evento composto pode ser agravado pelo El Niño, fenômeno climático caracterizado pelo aumento das temperaturas do oceano Pacífico equatorial, que no Brasil provoca chuvas torrenciais na região Sul e secas severas no Norte e Nordeste. O Sudeste brasileiro, devido às suas características naturais, socioeconômicas e demográficas, é uma das regiões mais vulneráveis à ocorrência de condições concorrentes de seca e onda de calor severos. Apesar dos riscos, ainda há poucos estudos focados nesta matéria para essa região brasileira, como de uma forma geral para todo o continente Sul Americano.

Renata destaca também a possibilidade de o estresse térmico aumentar mortalidade, além de ser responsável por 20% a mais de partos prematuros, fatos que foram abordados recentemente no artigo de revisão do grupo: Drought–heatwave nexus in Brazil and related impacts on health and fires: A comprehensive review, publicado na revista Annals of the New York Academy of Sciences. “Precisamos considerar o calor extremo como um desastre natural e um fator determinante sobre a saúde da população, sob o risco de uma sobrecarga – muitas vezes invisível - no sistema público de saúde”. Para a pesquisadora, o País está atrasado na elaboração de políticas públicas de prevenção e controle das mortes e agravos decorrentes do estresse térmico sobre a população e na adaptação das cidades ao calor. “É urgente a implementação de ações da agenda 2030 relacionadas às mudanças climáticas de forma transversal e que possam alcançar práticas que incidem em proteção à vida, principalmente dos grupos vulneráveis”, conclui.

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