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Publicado em: 04/05/2017
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Enxadas e foices na luta pela terra*

Aline Salgado

   
Dezenas de casebres foram incendiados por grileiros
na região da Fazenda São José da Boa Morte,
em Macacu
(Foto: Acervo Biblioteca Nacional)

O reconhecimento do direito à propriedade da terra por seu uso ancestral sempre foi marcado por disputas de poder e pelo uso da força. Mas diferente do que se conta nas escolas, os conflitos fundiários no Brasil não se concentraram apenas no Nordeste do País e nem tiveram somente as Ligas Camponesas como único movimento organizado. O estado do Rio de Janeiro também teve sua história preenchida por violentos conflitos rurais, que marcaram os progressos e retrocessos que a luta por justiça social no campo teve no País. Essas memórias, até então desconhecidas na historiografia nacional, foram resgatadas pela equipe de pesquisadores coordenada pela professora e pesquisadora Leonilde Servolo de Medeiros, do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). O grupo fez um extenso estudo e conseguiu mapear e analisar as principais disputas rurais no estado, antes e depois do Golpe Militar de 1964.

Com o nome de “Conflitos por terra e repressão no campo no estado do Rio de Janeiro", o projeto deu enfoque aos embates que aconteceram no período de 1946 a 1988 e só saiu do papel por meio do edital de Apoio ao Estudo de Temas Relacionados ao Direito à Memória, à Verdade e à Justiça Relativas a Violações de Direitos Humanos, lançado pela FAPERJ em outubro de 2013, nos esforços de colaboração aos trabalhos da Comissão Estadual da Verdade (CEV-Rio). Ao todo, a equipe, formada por 16 pesquisadores, sendo seis voluntários, mapeou 219 conflitos no período e estudou 19 casos que aconteceram em nove municípios: Cabo Frio, Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Magé, Valença, Cachoeira de Macacu, Trajano de Moraes, Angra dos Reis e Paraty. Em comum, as tensões se ligam pelo forte uso da violência, com a articulação da repressão entre agentes públicos e privados, seja pelo apoio direto ou, mais ainda, pela omissão ou conivência do estado.

“O conceito legal de graves violações dos direitos humanos é insuficiente quando se analisam os conflitos fundiários no Rio de Janeiro, pois as violações que identificamos não se restringem ao que define a lei. Despejos, agressões físicas, perda de bens, expropriações também atingiram os trabalhadores rurais e seus apoiadores e são elementos que fazem parte de uma dimensão não revelada da repressão no campo que se intensificou logo após o Golpe Militar, já no dia 1º de abril de 1964", sintetiza o historiador e um dos membros da equipe técnica, Marco Antonio Teixeira.

Tendo como ponto de partida 1946, os pesquisadores identificaram que as lutas pelo usucapião – o direito à propriedade da terra por seu uso ancestral – cresce em paralelo à maior conscientização e organização dos camponeses, bem como o aumento nos debates sobre a reforma agrária no País, que então ganharam força no governo do ex-presidente João Goulart. As primeiras organizações de lavradores surgiram em 1948 e o primeiro conflito identificado no período de análise e documentado por meio de jornais da época aconteceu em 1956, quando pioneiras associações de lavradores conseguiram o direito à terra onde viviam como posseiros, em Pedra Lisa, região de Nova Iguaçu na época, hoje Japeri. 

"Percebemos que havia uma grande articulação de movimentos camponeses no Rio de Janeiro no pré-64 feita pelo Partido Comunista Brasileiro [PCB]. Embora aparecessem outras organizações, como as Ligas Camponesas, mas com influência limitada. É conhecido que o partido tinha um trabalho de influência e conscientização do direito à terra e até estimulava a venda de produtos entre comunidades rurais", observa Leonilde, ressaltando que a resistência em Pedra Lisa, em 1956, que levou à desapropriação da terra, foi uma das que contaram com a forte influência do PCB. Algumas ocupações, entre 1961 e início de 1964, também se fizeram com uso de armas.

Como destaca a pesquisadora Leonilde Servolo de Medeiros,
militantes e simpatizantes da esquerda foram duramente
perseguidos pelos agentes do regime (Foto: Lécio A. Ramos)  

Nos anos 1960, durante a presidência de João Goulart, o Jango, a reforma agrária chega à pauta do governo com dezenas de propostas sendo discutidas no Legislativo. Mas Jango não tinha força política para convencer os parlamentares e nem apoio para fazer a reforma por meio de decreto presidencial. Na época, a Constituição só permitia desapropriações se o governo pagasse aos proprietários em dinheiro, o que dificultava a criação de um programa de distribuição de terras. Os movimentos e os parlamentares ligados à esquerda queriam que as desapropriações fossem pagas com títulos públicos, mas os fazendeiros não apoiavam a ideia, emperrando as negociações.


Na área rural do Rio de Janeiro, os conflitos se intensificam nesse período, com ocupações de terra em 1963 no Imbé, em propriedades que eram disputadas pela Usina Cupim, em Campos dos Goytacazes; em 1961 e 1963, na Fazenda São José da Boa Morte, em Cachoeiras de Macacu; em Magé, nas áreas da Companhia América Fabril, uma importante indústria têxtil; e ainda, em 1963, nas Fazendas Capivari, São Lourenço e adjacências, em Duque de Caxias, entre outras.

"As disputas se acirram dentro de um contexto político em que os debates sobre a reforma agrária ganham força no Congresso brasileiro, na pauta do Executivo e da mídia. Por outro lado, há a situação dos trabalhadores, muito pressionados para saírem das terras e com dificuldades de acesso a ela", ressalta Leonilde. 

O “Golpe de 64” marca a ruptura dos avanços na busca por uma distribuição de terra no País com justiça social, conforme apontam os pesquisadores. No dia seguinte à instituição do regime civil-militar, em 1º de abril, lideranças de organizações camponesas, filiadas ou não ao PCB, foram duramente perseguidas, tendo seus familiares e simpatizantes sofrido com a brutalidade dos agentes do regime de exceção.  

     
Ruínas da unidade de alvejamento da Companhia América
Fabril, em Cachoeira Grande, Magé (Foto: Marco Teixeira)

"O que mais nos impressionou é que a pesquisa de campo revelou depoimentos muito parecidos a respeito desse momento de repressão brutal em diferentes regiões de conflito no estado. Após a fuga das lideranças, o que se viu foi a revista para a localização de armas e a prisão dos líderes dos movimentos, com intimidação de parentes e familiares, incluindo crianças”, diz Leonilde, acrescentando que os depoimentos são bastante dramáticos.

“Em um deles, obtido em Teresópolis, um dos filhos de um líder, que se escondeu na mata, foi ameaçado de morte com uma arma posta dentro da boca para que contasse o paradeiro do pai", relembra a pesquisadora, que salienta que a repressão calou, em certa medida, o movimento pelo direito à terra, mas os trabalhadores mantiveram uma resistência no seu cotidiano, sob diferentes formas.

Para traçar toda essa original análise do conflituoso acesso à terra em áreas rurais do Rio de Janeiro, o grupo de pesquisa da professora Leonilde se debruçou sobre uma extensa documentação, organizada para permitir consulta a pesquisadores e guardada no Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo (NMSPP) do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ (CPDA/UFRRJ). O acervo foi formado por meio de doações de pesquisadores, em especial da própria professora Leonilde, da Federação dos Órgãos Assistenciais de Base (Fase) – organização não governamental criada nos anos 1960 para trabalhar com educação popular e que atuava diretamente com os trabalhadores rurais –, e cresceu com os documentos provindos de diferentes pesquisas feitas no CPDA/UFRRJ ou doados por diversos pesquisadores. Recentemente, com recursos da pesquisa financiada pela FAPERJ, foi digitalizada parte do acervo da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Rio de Janeiro (Fetag/RJ). 

Também fazem parte do acervo entrevistas realizadas com lideranças de conflitos fundiários, coletados em pesquisas diversas, quer de Leonilde, quer de seus orientandos, e também de outros pesquisadores que se dispuseram a doar o material ao NMSPP. Vários desses depoimentos também foram utilizados na pesquisa, incluindo dados da Comissão Pastoral da Terra, do Brasil Nunca Mais, do Projeto Memórias Reveladas do Arquivo Nacional, do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj) e de outros acervos locais.

Além da pesquisa em acervos documentais, o grupo foi a campo e colheu 82 depoimentos de lideranças de organizações de trabalhadores rurais da época, parentes de líderes mortos, moradores de regiões de conflito que viveram o período estudado e advogados que trabalharam nos sindicatos e na Fetag/RJ. Todo o material estudado levou aos pesquisadores a entender, também, como a Justiça tratava a busca pelo reconhecimento do direito à terra pelo seu uso ancestral. E a conclusão foi que esse tratamento não era nada amistoso.

"Os juízes locais autorizavam rapidamente os despejos por meio de ordem judicial, sem considerar o direito dos camponeses", diz Leonilde. Nas disputas estavam grandes proprietários, pretensos proprietários das terras, lideranças políticas e até empresários: todos, em sua maioria, buscavam ganhar com a especulação imobiliária, que transformava áreas rurais em loteamentos urbanos, ou visavam à construção de grandes empreendimentos, como ocorreu na Costa Verde. 

"Ainda nos anos 1950, a construção de estaleiros em Angra dos Reis já mexe com os camponeses da região. Mas é a partir da abertura da rodovia Rio-Santos (BR-101 Sul), na década de 1970, que os conflitos por terra explodem na Costa Verde", diz a pesquisadora Iby Montenegro de Silva, que acrescenta que na região a repressão aos movimentos sociais foi feita a mando dos próprios empresários. "Jagunços tocavam fogo nas casas de camponeses para obrigá-los a saírem das áreas de interesse. Nesses casos, fica claro como o estado contribuiu com a repressão por meio da omissão", destaca a pesquisadora.  

A omissão também se faz presente nos relatos de exploração de mão de obra rural assalariada, na área canavieira de Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense. Aqui, o que se apurou foi a submissão dos trabalhadores a condições precárias de trabalho, com casos extremos de contaminação por mercúrio, e o não cumprimento da legislação trabalhista, como horas de descanso e remuneração. Outra arbitrariedade revelada pela pesquisa foi a atuação de uma Guarda Rural do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra), em Cachoeiras de Macacu e Duque de Caxias, que colocava fogo na casa de camponeses considerados invasores de áreas de assentamento. 

"A cada novo documento e depoimento analisados, várias portas são abertas sobre a memória da luta pela terra no Estado. Essa pesquisa não acabou. Sentimos que as descobertas estão brotando e novos desdobramentos se abrem para que outros pesquisadores desvendem um mundo até então desconhecido para nós, pesquisadores, e para a sociedade", afirma Leonilde. 

Todo o material reunido no projeto "Conflitos e repressão no campo no Estado do Rio de Janeiro (1946-1988)" está sendo desdobrado em dissertações de mestrado e teses de doutorado. "Seguindo as pistas abertas pela pesquisa feita para a Comissão Estadual da Verdade (CEV) do Rio de Janeiro, os estudantes estão investindo em fontes documentais e nos depoimentos de camponeses que vivenciaram de forma direta esse momento de nossa história. Assim, será possível ampliar o conhecimento das resistências à ditadura no meio rural fluminense." Além disso, o material da pesquisa está sendo transformado em livro, que a pesquisadora espera ver nas livrarias antes do final de 2017.

"Paralelamente aos investimentos acadêmicos, estamos tentando estimular projetos de extensão, que possam levar os resultados do trabalho aos locais pesquisados, em especial aos professores das últimas séries do ensino fundamental e do ensino médio. Em parceria com a Universidade Federal Fluminense (UFF), a iniciativa já está tomando forma em Cachoeiras de Macacu,  e esperamos poder replicá-la em vários municípios do estado", diz a pesquisadora. Para tanto, energia e disposição não faltam à equipe.

*Reportagem originalmente publicada em Rio Pesquisa, Ano IX, Nº 33 (Dezembro de 2015)
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