O seu browser não suporta Javascript!
Você está em: Página Inicial > Comunicação > Arquivo de Notícias > Convivendo com o racismo à brasileira
Publicado em: 03/11/2016
ATENÇÃO: Você está acessando o site antigo da FAPERJ, as informações contidas aqui podem estar desatualizadas. Acesse o novo site em www.faperj.br

Convivendo com o racismo à brasileira

Vilma Homero

Os números não deixam dúvidas. Mesmo considerando diferenças etárias, de gênero e regionais, os dados apontam: negros que estudaram até o ensino médio ganham em média 90% do que ganham brancos na mesma situação. Quando avançamos para o ensino superior, essa diferença aumenta. Profissionais negros ganham em média 80% do que recebem os brancos com igual qualificação. Para quem ainda tinha dúvidas, essa constatação contradiz a velha afirmativa de que, no Brasil, convivemos com uma discriminação muito mais calcada em classe social do que em aspectos raciais. Analisando os dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a socióloga Graziella Moraes Dias da Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi levada a direções diametralmente opostas. 

Um  primeiro resultado é que, mesmo depois da expansão do ensino superior, a desigualdade racial no acesso a diplomas de faculdades e universidades permanece mais forte no Brasil do que nos Estados Unidos. “Levando em conta as diferenças nacionais no tamanho da população negra no ensino superior, observamos que negros brasileiros seguem mais sub-representados no terceiro grau do que negros americanos”, explica a pesquisadora. Um dos gráficos da pesquisa mostra que, embora tenha havido alguma melhora entre as gerações mais jovens, em geral, para cada três brancos formados no ensino superior, há menos de um negro formado. Nos Estados Unidos, essa taxa é de dois brancos para cada negro.

Mas essa sub-representação não é a única explicação para a desigualdade racial de renda. “Entre nós, é senso comum afirmar que tudo é uma questão social. Que ao ascender socialmente, o negro deixaria de ser alvo de discriminação. Mas não é isso que acontece. Ao contrário dos Estados Unidos, onde as diferenças salariais entre negros e brancos diminuem à medida que se eleva o nível de educação, no Brasil, observamos exatamente o contrário. Elas se acentuam”, explica a pesquisadora, que, com recursos do programa Jovem Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ, desenvolveu o projeto “Depois das ações afirmativas: transições de jovens profissionais da universidade para o mercado de trabalho”, parte de uma parceria com os pesquisadores Flavio Carvalhaes, da UFRJ, e Thomas DiPrete, Christina Ciocca e Luciana Souza Leão, da Universidade de Columbia, na cidade de Nova York, Estados Unidos.

Uma das razões para essa desigualdade é a concentração de negros em cursos de ensino superior de menor prestígio. “Ao contrário dos Estados Unidos, os negros brasileiros estão sub-representados em carreiras como Medicina, Engenharia ou Direito”, avalia Graziella. 

         
Graziella faz parte de uma equipe que estuda as desigualdades  
de raça nos Estados Unidos, Brasil e Israel (Foto: Lécio A. Ramos)

Mas mesmo a minoria de negros que consegue se formar nessas profissões e as exerce tem retorno financeiro menor do que os profissionais brancos. Isso porque o mecanismo que produz a desigualdade permanece, sobretudo nas carreiras de maior prestígio. “Isso também pode ter a ver com as redes de contatos sociais com que contam os profissionais brancos, e que certamente é bem maior e mais bem situada nas melhores posições. O negro pode ter menor acesso a uma rede social deste tipo”, explica. Com isso, uma das hipóteses a ser testada no projeto é ver se a transição do ensino superior para o mercado de trabalho é diferente entre negros e brancos.

Segundo Graziella, um economista ou engenheiro branco, por exemplo, pode ter mais chances de conseguir uma posição bem remunerada no mercado financeiro ou na administração de um banco de investimentos. Já o negro formado na mesma profissão, e sem contar com o apoio de uma rede de contatos sociais bem posicionada, mais provavelmente tentará vaga no serviço público. Se tiver se formado em direito, por exemplo, quais serão suas chances de conseguir uma posição num grande e prestigiado escritório de advocacia? Logo, também é provável que prefira concorrer a um cargo no sistema público, como defensor ou promotor.  

Mas como uma socióloga branca, com doutorado na Universidade de Harvard – uma das mais prestigiadas instituições de ensino e pesquisa em nível internacional, situada em Cambridge, no estado americano de Massachusetts –, chega a essas conclusões que contrariam o que já se tornou senso comum quando o assunto é racismo à brasileira? Como explica Graziella, que já fazia parte do Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Desigualdade, da UFRJ, o interesse pelas questões raciais cresceu justamente durante o doutorado na universidade americana, onde temas como desigualdade e raça são objetos frequentes de estudos.

“Para mim, incomodavam as explicações americanas, que têm muito mais a ver com uma sociedade em que os grupos raciais estão mais separados. O que me intrigava era a situação em nosso País”, diz a pesquisadora. Por isso mesmo, ela procurou investigar as nuances e sutilezas do caso brasileiro a partir de 160 entrevistas com negros brasileiros com ensino superior e com ensino médio. Os resultados de seus estudos foram reunidos aos de outros pesquisadores brasileiros, americanos e israelenses, no livro Getting Respect – responding to stigma and discrimination in USA, Brazil e Israel (400 pág.), lançado no final de agosto pela editora da Universidade de Princeton, em Nova Jersey, nos Estados Unidos. Os autores são Michele Lamont,  Graziella, Jessica S. Welburn, Joshua Guetzkow, Nissim Nizrachi, Hanna Herzog e Elisa Reis. A quem estranhou a inclusão de Israel, é bom lembrar do caso palestino, cujos relatos no livro mostram de forma contundente como é ser cidadão palestino em Israel.

Outro ponto analisado foi a percepção e a reação à discriminação. Explicando melhor: como o racismo brasileiro se dá de forma velada, subentendida, nem sempre é percebido como tal. Um exemplo corriqueiro são as piadinhas de cunho racista, que em grande parte das vezes são vistas apenas como “brincadeira” tanto por brancos quanto por negros. “Entre nós, as situações se dão de tal forma que, embora expressões associadas à raça não sejam mencionadas, as pessoas se sentem desrespeitadas, humilhadas, e sabem que se trata de um tratamento diferente por causa da cor da pele. É o que chamamos de ‘stigma’."

Nesses casos, às vezes também fica o medo de ser tomado como obcecado por raça, recalcado, ao mencionar o fato como racismo. "É aqui que o caráter sutil e mascarado do racismo brasileiro mostra seu aspecto mais perverso, por muito tempo negado como um problema. Embora essas situações se repitam no dia a dia, para elas não há políticas públicas e nem punição”, afirma.

Também nesse ponto, percebeu-se uma diferença bastante perceptível entre o grau de educação e o tipo de reação. “Uma mesma situação tende a ser vista de forma diferente entre negros que cursaram até o ensino médio e aqueles que têm ensino superior. Em outras palavras, isso quer dizer o seguinte: negros de ensino médio tendem a ignorar com maior frequência as situações de discriminação e a adotar mais o que chamamos de ‘gerenciamento do eu’, enquanto entre os de nível superior é mais comum o questionamento e o confronto”, analisa Graziella. 

Mas o que vem a ser “gerenciamento do eu”? Segundo a pesquisadora, é a forma de lidar com essas situações rotineiras, seja buscando saídas pelo humor ou pela ironia, seja minimizando o acontecido. “Nos Estados Unidos, ao contrário, estimula-se o confronto, que se dá com muito maior frequência, independente do nível de instrução”, afirma.  

Outro contraste gritante entre negros brasileiros e americanos aparece com relação às amizades. “Uma das perguntas da nossa pesquisa era direta: ‘Para você, raça importa na hora de escolher seus amigos?’ Mas diante de uma enorme reação a essa pergunta, que muitos alegaram ser racista, mudamos a formulação para ‘Você tem amigos de todas as cores?’. Nos Estados Unidos, a grande maioria dos negros respondeu que tinha, sim, amigos de raças diferentes, mas que os mais próximos eram negros. No Brasil, a maioria também respondeu falando da diversidade racial de suas amizades. Mas o que surpreendeu foi que, se entre negros de ensino médio essa diversidade prevalece, entre os de ensino superior, a maior parte dos amigos passa a ser branca.

“Entre nós, não existe percepção de afinidades sociais ou culturais por conta da raça, como na sociedade americana. E à medida que o negro ascende culturalmente e socialmente, cada vez mais ele é levado a conviver num meio branco.” De tudo isso, o que fica claro é o cenário de dificuldades que o negro brasileiro tem pela frente. E o branco também, se quiser viver em uma sociedade mais igualitária e tolerante.

Compartilhar: Compartilhar no FaceBook Tweetar Email
  FAPERJ - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
Av. Erasmo Braga 118 - 6º andar - Centro - Rio de Janeiro - RJ - Cep: 20.020-000 - Tel: (21) 2333-2000 - Fax: (21) 2332-6611

Página Inicial | Mapa do site | Central de Atendimento | Créditos | Dúvidas frequentes