Paula Guatimosim
Cerca de 40% dos pacientes infectados pelo Sars-CoV-2 apresentam |
Pesquisas têm mostrado que além da alta taxa de letalidade, o novo coronavírus pode causar infecções e danos não apenas nos pulmões e no coração, mas também em outros órgãos e sistemas como rins, fígado, pele, vasos sanguíneos, sistema gastrointestinal e cérebro. Pesquisa desenvolvida na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com o Instituto D’Or (Idor), o Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer (IEC) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mostrou que o Sars-CoV-2, vírus causador da pandemia de Covid-19, pode infectar células neurais e causar danos cerebrais. O artigo Infecção não permissiva por SARS-CoV-2 de células neurais no cérebro humano em desenvolvimento e neuroesferas, em preprint, conduzido por estas instituições, partiu da análise do tecido neural de uma criança que veio a óbito pela doença, e também de análises em laboratório com neuroesferas humanas infectadas.
“Descobrimos que as células neuronais são suscetíveis ao Sars-Cov-2, mas o vírus não é infeccioso. Ele consegue produzir seu material genético dentro da célula, mas a progênie viral gerada, ou seja, o ciclo replicativo, não acontece”, explica o virologista Thiago Moreno Souza, do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS), na Fiocruz. Membro da Academia Brasileira de Ciências, o biólogo explica que até agora os estudos mostravam que no parênquima cerebral, ou seja, na massa cinzenta propriamente dita, não havia sido detectada a presença do vírus. Porém, no revestimento das células que estão na caixa craniana sim.
A partir desta informação, e também com base em evidências detectadas em exames de imagem, os pesquisadores iniciaram uma série de experimentos em laboratório para avaliar se, de fato, o neurônio se infectava ou não. O Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde, na Fiocruz, é responsável pelas infecções experimentais e quantificação viral. Já o grupo que reúne o Idor e a UFRJ, liderado pelo neurocientista Stevens Rehen, encarrega-se da prospecção do caso clínico e a preparação de modelos neuronais tridimensionais.
Segundo Rehen, mais de 40% dos pacientes com Covid-19 apresentam sintomas neurológicos e neuropsiquiátricos, sendo que metade destes mantêm alguns dos sintomas neurológicos por pelo menos três meses após a doença. O pesquisador explica que o plexo coróide possui uma camada epitelial com junções compactas que desempenham uma função de barreira. A disfunção dessa estrutura causada pela infecção por Sars-CoV-2 pode contribuir para alterações associadas às manifestações neurológicas decorrentes da Covid-19. “A gliose da substância branca que descrevemos pode explicar algumas das lesões no cérebro causadas pelo Sars-CoV-2. Pretendemos analisar os mecanismos moleculares que definem a forma como o novo coronavírus infecta, por exemplo, as células gliais (astrócitos) do cérebro humano”, esclarece.
Leila Chimelli e Stevens Rehen compõem a equipe que conduziu os estudos, a partir de autópsia de uma criança que veio a óbito devido à Covid-19. |
A neuropatologista do Instituto Estadual do Cérebro, Leila Chimelli, foi quem examinou o cérebro da criança de um ano e dois meses após a autópsia, realizada em um dos poucos hospitais que ainda realizam esse procedimento no Rio de Janeiro. Segundo ela, a criança já possuía uma lesão cerebral anterior, uma encefalopatia grave, provavelmente provocada por hipóxia, não sendo descartada uma causa metabólica. Em decorrência dessa lesão, a criança já havia sido internada três vezes com crises convulsivas, a primeira delas em dezembro de 2019. Foi na quarta e última internação, em abril, quando já estava infectada pelo novo coronavírus e apresentava uma lesão pulmonar grave decorrente de pneumonia, que a criança veio a óbito.
Para a médica, é importante ressaltar que a lesão cerebral prévia da criança foi agravada pela Covid-19. “No entanto, o mais importante foi detectarmos que o vírus chega no cérebro. O fato de o vírus ter sido encontrado no plexo coroide, que é uma estrutura ricamente vascularizada e uma barreira natural entre o sangue periférico e o cérebro (líquor), indica que o caminho do vírus para o sistema nervoso central, neste caso, e talvez em outros, seja via sanguínea, ou seja, hematogênica”, explica a neuropatologista. Leila lembra que, no início da pandemia, foi comentado que alguns dos pacientes internados no Instituto Estadual do Cérebro apresentavam sintomas indicativos de provável comprrometimento cerebral.
“O que descobrimos foi que as células neuronais conseguem permitir a entrada do vírus. Ele consegue, então, produzir seu material genético dentro da célula, mas, a progênie viral gerada, ou seja, o ciclo replicativo, não acontece. Portanto, o que entendemos na conclusão deste estudo é que essa replicação no neurônio é abortiva – quando chega lá, não há mais a replicação e, assim, não existe a infecção no local. Contudo, isso não é suficiente para não causar uma lesão. Só o fato de o vírus estar presente no tecido nervoso já é nocivo para as células cerebrais”, esclarece Thiago Moreno, acrescentando que é preciso entender as variações genéticas do vírus e as diferentes formas que ele afeta os infectados.
A pesquisa relembra que inicialmente descrita como uma infecção viral do trato respiratório, a Covid-19 mostrou que afeta muitos outros sistemas biológicos, incluindo o sistema nervoso central (SNC). Alerta para o fato de que manifestações neurológicas, como acidente vascular cerebral, encefalite e condições psiquiátricas foram relatadas em pacientes com a doença, mas os poucos estudos já realizados ainda estão sendo avaliados e debatidos. A pesquisa chama atenção para o potencial do vírus em provocar uma infecção mais grave e letal do que a registrada nos pulmões. Publicado em preprint, https://www.preprints.org/manuscript/202009.0297/v1), o artigo colabora para confirmar suspeitas detectadas em exames de imagem, como os realizados pela neuroradiologista Lara Brandão, médica do Hospital Felippe Mattoso. Em palestra sobre “Neuroimagem na Covid-19, muito além dos Pulmões”, Lara afirma que o vírus tem sido detectado nos neurônios. Segundo ela, estima-se que 36% dos pacientes terão comprometimento neurológico em diferentes graus, apresentando desde cefaleias e alterações sensitivas, passando por crises convulsivas e alterações de consciência, até o comprometimento do olfato e do paladar.
Moreno: "Precisamos de opções de medicamentos que possam combater a doença” (Foto: CDTS-Fiocruz) |
Um dos contemplado pelo programa Jovem Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ, Thiago Moreno e seu grupo de pesquisa vêm recebendo, igualmente, apoio da FAPERJ para a realização de seus estudos ao longo dos últimos anos por meio de diversas chamadas, como a Ação Emergencial Projetos para Combater os Efeitos da Covid-19, do Apoio a Grupos Emergentes de Pesquisa e dos editais de Apoio à Inserção de Mestres e Doutores em Empresas Sediadas no Estado do Rio de Janeiro e de Apoio a Projetos Temáticos. Membro do grupo Coalizão Covid Brasil, que reúne hospitais e instituições de pesquisa de todo o País, Thiago vem se dedicando a verificar a eficácia de outros antivirais na redução da carga viral do novo coronavírus, incluindo os usados para o tratamento do HIV, como o atazanavir e o ritonavir. “Precisamos de opções de medicamentos que possam combater a doença”, alega o pesquisador.
O virologista acredita que a capacidade de mitigar o aparecimento de novas ameaças epidemiológicas é minada pela falta de conhecimento sobre a ecologia viral e os condutores, incluindo os comportamentos humanos, que impulsionam a emergência pandêmica. “Devemos perceber quão limitadas são nossas opções de adaptação e mitigação e quão vulnerável é a comunidade global”, alerta. Em sua opinião, as pesquisas deveriam ser contínuas, no sentido de catalogar a diversidade genética viral, realizar estratégias metagenômica e metatranscriptômica para a identificação de novos agentes antes deles se tornarem epidêmicos, identificar moléculas com potencial antiviral, sejam novas substâncias ou drogas reposicionadas, para combater ameaças à saúde pública.
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