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Publicado em: 25/06/2020 | Atualizado em: 26/06/2020
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Acesso à saúde e mortes violentas reacendem debate sobre racismo

Juliana Passos

Em plena pandemia, manifestantes protestam contra a precariedade do atendimento
pelos serviços de saúde pública e pela falta de apoio à população
 (Foto: Mateus Santos)

Dados do último relatório epidemiológico divulgado pela Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, divulgado em 14 de junho, informam que o número de pessoas brancas hospitalizadas por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) foi de 84.122, 77.476 pardas e 12.345 pretas. Ao compararmos esses números com a porcentagem de mortos, temos uma porcentagem de letalidade em 21% na população branca, 27% na parda e 25% na preta. Os números da maior pandemia dos últimos 100 anos também servem para colocar em evidência a persistente desigualdade racial que atravessa a formação da sociedade brasileira ao longo dos séculos.

Ao refletir sobre a questão racial por meio de dados e observações, o geógrafo Renato Emerson dos Santos, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ippur/UFRJ), faz referência a uma fala do filósofo camaronês Achille Mbembe de que vivemos uma distribuição desigual dos riscos. No que toca o Brasil, Santos afirma que os riscos são desigualados de acordo com a raça, vulnerabilizando ainda mais a população negra, a partir de quatro campos principais: a infraestrutura, em que estão incluídos o acesso à saúde e à habitação; a inserção profissional, em que a precarização do trabalho incide proporcionalmente mais sobre a população negra, sobrerrepresentada nas atividades de manutenção dos serviços essenciais – mercados, transporte, saúde, segurança –, a seletividade do atendimento; e a prevalência de comorbidades prévias que agravam o risco da doença, como diabetes e cardiopatia.

Em paralelo ao problema do atendimento à população negra e parda nos serviços públicos de saúde, duas mortes recentes, de uma criança e um jovem, ambos negros chocaram o País. João Pedro Mattos brincava em casa, quando foi alvejado por um tiro durante operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. Já Miguel Otávio caiu do nono andar de um prédio em Recife, quando estava sob os cuidados da empregadora de sua mãe Mirtes Renata, empregada doméstica na casa. As mortes contribuíram para reacender a discussão racial no País, influenciada ainda pelos protestos nos Estados Unidos, após o assassinato de George Floyd por um policial por asfixia.

Para o pesquisador, que coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Geografia, Relações Raciais e Movimentos Sociais (Negram), o cenário de desigualdades já existentes, combinada com a chegada da pandemia torna ainda mais evidente o que diversos estudos tem entendido como "o mito da democracia racial". “O mito da democracia racial funciona como uma blindagem cognitiva. Aqui observamos a desigualdade à nossa frente, mas não se entende isso como algo relevante. A negação do racismo faz com que aprendamos a conviver com o racismo, como, por exemplo, a aceitar trajetórias profissionais totalmente brancas. Um professor universitário pode passar sua carreira de 30 anos sem ter um colega negro e considerar isso natural. Podemos passar a vida inteira sem ter uma consulta com um médico negro, ver um juiz negro, e considerar isso normal em um país de maioria negra”, explica o pesquisador, que recebe apoio da FAPERJ para a realização de suas pesquisas por meio do programa Jovem Cientista do Nosso Estado, e também do programa ProCiência, parceria entre a FAPERJ e Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), instituição a qual esteve vinculado de 2000 a 2018.

Coordenador de pré-vestibular popular da Rocinha por seis anos e professor por 18 na Faculdade de Formação de Professores da Uerj (FFP/Uerj), o geógrafo pesquisa o reforço e o combate ao racismo na dinâmica escolar do ensino público. “Nas turmas das séries iniciais nas escolas públicas, identificamos uma mistura de cores que vai desaparecendo ao longo dos anos e que fica bastante perceptível nas séries finais, quando os colégios costumam dividir os estudantes por questionáveis critérios de desempenho”, relata Santos. “As turmas mais promissoras são mais claras e aquelas que reúnem o maior número de alunos repetentes ou com descompasso entre idade e série, concentram maior proporção de estudantes negros, principalmente meninos. Os negros também são maioria nas turmas de Educação de Jovens e Adultos, evidenciando que, dentro das próprias escolas públicas, temos composições raciais diferentes nas turmas em séries iniciais e finais. O racismo interfere nas trajetórias escolares, independente da condição socioeconômica”.

Ao comentar trabalhos que identificaram diferenças de tratamento desde as séries iniciais entre estudantes brancos e negros, realizados pela professora da Universidade de São Paulo (USP) Marília Carvalho e por Eliane Cavalleiro, conferencista na Universidade de Stanford e doutora em Educação pela USP, o pesquisador defende a necessidade de reformulação dos currículos escolares, não só no conteúdo, mas também na adoção de práticas igualitárias. “Em um quadro de igualdade, ainda que sejam todos pobres, há uma diferença de desempenho por raça. E essa barreira não pode ser outra que não o racismo. O Brasil cresceu muito economicamente em anos anteriores, mas a desigualdade racial permanece. Não é possível dizer que a questão seja social e não racial”, avalia.

Estudioso da Lei 10.639/2003, que determinou a obrigatoriedade do ensino sobre história e cultura afro-brasileira, ele pôde perceber que não é uma tarefa fácil para os docentes falar sobre o continente africano fugindo de um roteiro que, invariavelmente, passa pela civilização egípcia, tráfico negreiro, partilha do continente pela Europa e tragédias humanitárias. “Essa maneira de ver o mundo, que associa os negros à África e a apresenta como um continente caracterizado apenas por tragédias, ocultando suas contribuições para a humanidade, faz parecer que esse grupo ‘nunca construiu nada’, o que é uma mentira, e autoriza sua subalternização”.

O geógrafo diz que essas reflexões são propostas em aulas e oficinas, mas não sem reações sobre a inexistência do racismo no Brasil. “O mito da democracia racial leva a reações fortes de negação. Quando fazíamos as oficinas nas escolas, sabíamos que esse era um problema que nós iríamos encontrar e eles se repetiam. Muitas pessoas não querem se se sentir responsabilizadas por isso e reconhecer o papel de transformação que têm”, comenta.

Muitas vezes se atribui ao clássico de Gilberto Freyre, Casa Grande Senzala, como a obra responsável pela criação de um imaginário do povo brasileiro como cordial e plural, esquecendo os conflitos existentes. Santos explica que a obra deve ser entendida dentro do contexto da época em que foi lançada, quando se discutia abertamente nas instituições do Estado brasileiro o branqueamento da população. “Atas de Congressos e de discussões parlamentares nos mostram que não havia discussão sobre a necessidade ou não de branqueamento, mas de qual imigrante europeu ou oriental seria mais adequado para o cumprimento da meta. Em 1911, houve um congresso em Londres e João Batista de Lacerda, diretor do Museu Nacional, disse que em um período de 100 anos o Brasil não teria mais problemas de racismo, pois o País estava trazendo imigrantes e em três gerações estaríamos puros”, exemplifica.

Renato Emerson dos Santos: para o geógrafo, a persistência da desigualdade
social mesmo após o
crescimento econômico por que passou o País em anos
recentes confirma que a questão é racial
(Foto: Arquivo pessoal)

O pesquisador entende que é preciso manter a memória viva sobre o racismo ao longo dos séculos e, por isso, avalia como polêmica a ideia de destruir estátuas de escravocratas, como tem sido feito nos Estados Unidos. “Essa discussão sobre as estátuas se insere nessa perspectiva sobre a formação humana, e vem se fortalecendo a ideia do território como ferramenta educativa – forte, por exemplo, na Alemanha por conta do nazismo. A questão é como construir uma memória que forme uma consciência crítica, a partir de patrimônios materiais e simbólicos com os quais as pessoas interagem na cidade. Um exemplo é o teleférico construído em La Paz, em que as estações foram nomeadas em espanhol, quéchua e aymara, três idiomas predominantes no país, valorizando as representações e identidades dos povos que compõem a nação – no caso boliviano, o Estado se reconhece como plurinacional. Esse é um esforço de uma construção de uma cidade anti-racista”, explica. Nessa mesma linha está a discussão sobre as nomenclaturas da região do Cais do Valongo, no centro do Rio, que passou a ser chamada de Porto Maravilha após as reformas para a Copa do Mundo, mas está em disputa para ser nomeada como Pequena África, e até as estações do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) vem tendo sua nomeação disputada para valorizar as memórias negras da região.

Para finalizar, Santos faz a ressalva de que não é possível comparar os movimentos negros no Brasil e nos Estados Unidos, por se tratarem de sociedades bastante diferentes, ainda que haja influência mútua. Se o Brasil é influenciado pelas mobilizações atuais, o coordenador do Negram diz que o movimento pelos direitos civis dos EUA das décadas de 1960 e 1970 também sofreu influência da Frente Negra Brasileira, que se oficializou como partido, mas foi fechada em 1937, com o Estado Novo (1937-1945), de Getúlio Vargas. A Frente Negra lutava por direitos civis, como a educação e o combate à discriminação. “É preciso valorizar e difundir essa rica memória histórica das experiências de lutas dos negros no Brasil, em vez de fazer comparações”, conclui.

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