Os descendentes de escravizados e a formação da música popular no País

Danielle Kiffer / Rio Pesquisa - Ano 11 - nº 41 - Dezembro de 2017

Pesquisa desenvolvida na UFF resgata a trajetória do primeiro cantor negro a gravar um disco na indústria fonográfica do Brasil e destaca a importância dos músicos descendentes de escravos para a formação da cultura musical brasileira

A vida cultural do Rio de Janeiro, principalmente do bairro da Lapa e arredores, não deixa dúvidas: o período da escravidão marcou a cidade com seu legado cultural. Rodas de samba, jongo, caxambu e o partido-alto são parte intrínseca da identidade carioca. Entretanto, para que esses ritmos contagiem os dias e noites da cidade hoje, houve muita luta e ação dos músicos negros no passado. Um grande exemplo foi Eduardo Sebastião das Neves (1874-1919), que, descendente de escravizados, se tornou artista no período pós-abolição, enfrentando o preconceito e as dificuldades da época para defender sua arte. Também conhecido como Dudu das Neves, Palhaço Negro, Diamante Negro e “Crioulo Dudu”, Neves atuou como palhaço de circo, poeta, compositor e principalmente cantor de lundus. Foi o primeiro cantor negro a gravar um disco para a indústria fonográfica do Brasil, na primeira década do século XX.


A investigação sobre a trajetória desse tão importante artista e sobre o legado da memória da escravidão para a construção da música negra no Brasil, em particular, no Rio de Janeiro, entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX, faz parte do estudo da historiadora Martha Campos Abreu, professora e pesquisadora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), que é Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ. “Com esse projeto – um desdobramento de um projeto coletivo mais amplo coordenado por mim e pela pesquisadora Hebe Mattos, denominado Memória e Música Negra no Rio de Janeiro –, investigo a construção de leituras do passado escravo em sua dimensão musical”, explica Martha.


De acordo com a historiadora, ainda no período da escravidão, músicos negros encontraram projeção nos teatros e circos com variados estilos musicais, da música erudita ao jongo. Após a abolição, em meio ao crescente interesse comercial pelos “sons das senzalas”, muitos deles, mesmo com as adversidades da época, buscaram espaço no mundo das edições musicais e na indústria fonográfica, que então dava seus primeiros passos no Brasil com lundus, maxixes, sambas e jongos. “Naquele momento, esses gêneros, herdeiros das ‘canções escravas’, formavam o que havia de mais moderno no campo musical no Brasil”, diz a pesquisadora. Além de Dudu das Neves, ela cita Henrique Alves de Mesquita, Anacleto de Medeiros, Joaquim Callado, Donga, Sinhô, Patápio Silva, os músicos do grupo Oito Batutas (grupo musical que tinha como integrante Pixinguinha), Getúlio Marinho, entre muitos outros artistas.


A projeção das “canções escravas” no Rio de Janeiro do início do século XX não era um fenômeno singular brasileiro. Processos semelhantes, com músicos negros protagonizando várias inovações rítmicas e estilísticas, também podem ser registrados na vida musical de regiões marcadas pela diáspora africana, como os Estados Unidos, Cuba, Caribe inglês e Argentina, especialmente depois que a indústria fonográfica implantou seus negócios por todos esses locais. “A canção escrava, de fato, não desapareceria com a abolição, como muitos intelectuais da época apostaram. Pelo contrário, renovou-se – e não só no Brasil – na diversidade musical dos lundus, maxixes, sambas, cakewalks, rags, blues, jazz, rumbas, calipsos e tangos, invadindo os circuitos musicais atlânticos de Paris, Londres e Nova York. Após a escravidão, essa canção assumiu uma versão mais moderna, passando a ser conhecida e divulgada como ‘música negra’ em suas diversas denominações regionais e nacionais”, conta Martha.


Eduardo Neves, um dos precursores desse movimento, apresentava em suas canções assuntos relativos às representações dos negros no período pós-abolição, com temáticas ligadas ao passado escravista, à conquista da liberdade e à construção de uma identidade negra. “Ele se autointitulava ‘Crioulo Dudu’ e era orgulhoso de sua cor e de ser cantor de lundu”, diz a historiadora.


Dudu das Neves começou como artista de circo, um local com preços mais acessíveis à população menos abastada. Na época, o circo reunia apresentações de danças e textos teatrais mais sérios ou marcados pelo humor dos lundus, um gênero irônico e brincalhão para tratar de assuntos mais polêmicos. “Os lundus de Dudu das Neves eram muito irreverentes, com versos e ritmos bem cadenciados. Em suas canções, contou histórias da escravidão, da abolição e muitas ironias com os senhores de escravos. Além disso, fazia política com sua arte e apresentava-se em associações culturais negras”.


Depois de alguns anos na estrada, ele foi contratado pela Casa Edison, representante de uma indústria fonográfica de capital multinacional e com fortes vínculos com os Estados Unidos. Suas primeiras gravações foram lançadas na primeira década do século XX. “Eduardo das Neves é de extrema importância para o estudo da história do protagonismo de artistas negros no campo musical, um pouco antes do samba projetar-se como gênero popular e comercial, pois quase não há registros sobre o assunto”, explica a pesquisadora.


Mesmo com todo o sucesso da mú­sica negra, o racismo nunca deixou de ser o grande obstáculo, em todas as Américas, no caminho desses artistas, pois seus talentos, artes e genialidades não eram reconhecidos. As “canções escravas” até po­deriam estar nos palcos ou na capa das partituras vendidas, mas não seus protagonistas. “Eles di­fi­cilmente estrelavam nos palcos. Em geral, artistas negros apareciam, também no Brasil, em blackfaces – prática teatral de atores que se coloriam de preto para representar personagens afrodescendentes de forma exagerada e caricata. Por outro lado, a plateia e os empresários esperavam dos artistas negros as expressões dos estereótipos que costumeiramente lhes eram atri­­­buídos, como a comicidade, inge­nuidade e sensualidade exa­gerada”.


Entre o protagonismo dos músicos negros e o racismo enfrentado cotidianamente, o campo musical, na opinião de Martha, tornou-se um espaço de luta e de afirmação da identidade negra. “O campo musical passou a expressar, no Brasil e em todas as Américas, os impasses e conflitos sociais e políticos vividos no pós-abolição por diversos atores sociais. Por meio da música, discutia-se não só o legado cultural da escravidão e da África nas nações modernas, mas também as formas da presença e representação dos negros nos palcos e, por extensão, na própria sociedade”, relata a historiadora.


“Portanto, na atualidade, a cada casa de shows em que estiver tocando um partido alto, ou quando vir as pessoas cantando felizes em uma roda de samba, saiba que hoje desfruta-se desses ritmos musicais graças à resistência, perseverança, talento e genialidade de descendentes de africanos escravizados, entre eles, brilhantes artistas como Eduardo das Neves, Anacleto de Medeiros, Henrique Alves de Mesquita, Callado, Pixinguinha, Patápio Silva, Getúlio Marinho, J. B. de Carvalho, Mano Eloi, entre tantos outros que acabaram sendo apagados na história”, enfatiza Martha.


O estudo, que utilizou variadas fontes musicais, como capas de partituras, gravações sonoras, registros de memorialistas e de espetáculos nos jornais, resultou na publicação de um livro, intitulado Da Senzala ao Palco: canções escravas e racismo nas Américas, 1870-1930, pela editora da Unicamp (coleção História Ilustrada). Por ser em formato digital, oferece muita interação com o leitor a partir de 201 imagens, 47 fonogramas e cinco vídeos. Acompanha também o livro um vídeo de 10 minutos, disponibilizado no Youtube, para utilização em sala de aula. (https://www.youtube.com/watch?v=agZPb-uEVto)


Pesquisadora: Martha Campos Abreu
Instituição: Universidade Federal Fluminense (UFF)
Fomento: programa Cientista do Nosso Estado