Um capacete flexível que pode salvar vidas

Lavínia Portela/ Rio Pesquisa - Ano 9 - nº 38 - março de 2017

Pesquisadores desenvolvem touca inflável capaz de resfriar a cabeça de recém-nascidos que sofreram asfixia cerebral perinatal

Pesquisador do Centro de Desenvolvimento Tecnológico da Fundação Oswaldo Cruz (CDTS/Fiocruz) e do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ICB/UFRJ), o médico Renato Rozental e sua equipe desenvolveram um dispositivo de hipotermia focal cerebral neonatal que pode salvar vidas. Trata-se de uma espécie de capacete flexível ou touca que oferece a possibilidade de manter resfriado o cérebro com déficit de oxigenação, minimizando o desenvolvimento e gravidade de lesões neurológicas. Utilizado em recém-nascidos que sofreram asfixia cerebral perinatal, o dispositivo provoca a hipotermia controlada apenas do cérebro para interromper o avanço de lesões do tecido nervoso que podem matar ou mesmo deixar sequelas para o resto da vida.


Primeiro dispositivo de hipotermia cerebral projetado para ser utilizado fora do ambiente hospitalar, o capacete flexível, que pode ser transportado com facilidade, tem a vantagem de permitir que o socorro seja prestado antes mesmo de a vítima chegar ao hospital e, por isso, pode ajudar a evitar mortes por asfixia em crianças nascidas de partos realizados de forma inadequada em regiões sem assistência ou mesmo com rede de saúde precária.


Segundo o pesquisador, a asfixia perinatal é a primeira causa de mortalidade de recém-nascidos no mundo. Por ano, em torno de quatro milhões de recém-natos apresentam asfixia. Entre eles, um milhão morrem e dois milhões ficam com sequelas graves. “O tratamento dessa emergência médica, portanto, constitui uma corrida contra o tempo”, explica o médico, Professor Clínico Visitante do Albert Einstein College of Medicine, no Bronx, em Nova York, nos Estados Unidos.


Em países com renda baixa e média, as crianças, muitas vezes, nascem em condições sanitárias, médicas e sociais adversas. Neste cenário, a asfixia perinatal é uma causa importante de mortalidade e morbidade. De acordo com Jorge Rezende Filho, Professor Titular de Obstetrícia da Maternidade Escola da UFRJ, uma série de fatores podem levar à asfixia perinatal. Um dos mecanismos mais comuns é a alteração da oxigenação fetal ocorrida durante o trabalho de parto. Esta alteração pode ser devido ao déficit de aporte sanguíneo para a placenta, seja porque o padrão das contrações uterinas está alterado ou porque existe algum comprometimento na circulação do feto para a placenta (por exemplo, voltas do cordão umbilical ao redor do pescoço fetal, o chamado “circular de cordão”). Mas, seja em razão das alterações de contratilidade uterina ou das alterações da circulação do feto para a placenta, o resultado será uma baixa na oxigenação do feto. A isso se dá, explica Rozental, o nome de sofrimento fetal intraparto ou sofrimento fetal agudo.


Outra situação que pode ocorrer não se dá durante o trabalho de parto, e, sim durante a gravidez, com a insuficiência da placenta, uma falha no seu funcionamento, ocorrida ao longo da gravidez. “Podemos citar como exemplo, uma mulher com hipertensão arterial ou uma mulher que tenha desenvolvido hipertensão na gravidez – essa é a causa mais frequente–, a placenta deixa de funcionar, cronicamente deixa de oxigenar o feto, que ao nascimento já apresenta uma repercussão pela baixa da oxigenação”, diz o médico. Com a oxigenação do cérebro comprometida, o recém-nascido pode morrer ou ter problemas neurológicos para o resto da vida. “Com esse dispositivo, a criança com um quadro de asfixia iniciada durante o trabalho de parto, ou pós-parto, ganha tempo até chegar ao hospital para receber recursos especializados”, explica o neurocientista.


Em paralelo, o grupo de pesquisa liderado por Rozental, está conduzindo estudos sobre o impacto de episódios hipóxicos crônicos intrauterinos (cíclicos ou constantes), no sistema nervoso central em desenvolvimento assim como esta avaliando o impacto longitudinal, isto é, durante a vida, de episódios hipóxicos em fases distintas da gestação. O grupo destaca-se neste processo não somente por envolver profissionais brasileiros e americanos em fases avançadas de formação, mas pelo envolvimento dos estudantes de medicina Pedro H. Freitas, Jairo G. Fioravante, Caio M. Perret, Tagore M. Lima, Nathália G. D. Santos, e Renato Machado, e dos médicos, em formação, Raphael Bertani, residente de neurocirurgia no Hospital Municipal Miguel Couto, e Pedro C.D. Rodrigues, médico do Hospital Estadual Getúlio Vargas.


A mesma lógica deve ser aplicada a lesões provocadas por traumatismo cranianoencefálico (TCE), uma das principais consequências de acidentes de trânsito e domésticos. “Quando a pessoa está na rua e sofre isquemia ou traumatismo craniano, por exemplo, a tendência é que aumente a temperatura em áreas do cérebro, causando danos sérios e até irreversíveis. A touca permite reverter esse quadro, ainda na rua, minimizando os problemas”, ressalta Rozental, lembrando que o resfriamento do cérebro já é um tratamento consagrado nos meios hospitalares no mundo inteiro. “O dispositivo é que está sendo reconhecido internacionalmente por ser um produto inovador, acessível em qualquer ambiente, tanto fora como dentro do hospital”. Em setembro de 2012, o pesquisador havia apresentado o primeiro dispositivo – este na forma de um capacete rígido – destinado a reduzir os danos causados em casos de traumatismo cranioencefálico (TCE) fora do ambiente hospitalar. Naquela ocasião, o assunto foi abordado na Reportagem de Capa da edição nº 20 da revista Rio Pesquisa/Faperj. 


A inovação não necessita de energia elétrica nem de água. Além disso, o dispositivo é leve e proporciona uma hipotermia focal, ou seja, apenas do cérebro – eliminando os efeitos adversos observados com a hipotermia sistêmica, que afeta o corpo inteiro. “Como é barato, o dispositivo pode ser adquirido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), para distribuição na rede pública de saúde do Brasil”, sugere o neurocientista. 


Segundo Rozental, o capacete consegue manter o resfriamento do cérebro por até 4h. O processo ocorre por meio de injeção de gases, a partir de válvulas que se encontram na parte externa do dispositivo. Os gases introduzidos abastecem um compartimento interno de bexigas interconectadas, iniciando, assim, um processo termodinâmico de resfriamento. A substância pode ser armazenada em uma pequena garrafa de alumínio, de fácil transporte e manuseio. “Eu acredito que daqui a dois anos o dispositivo esteja concluído. O nosso sonho é ver este dispositivo em uso não somente no Brasil, mas em comunidades carentes do globo”, diz ele. 


Há três modelos diferentes do capacete: adulto, médio (para quem tem um crânio menor) e neonatal. O projeto contou com recursos da FAPERJ, por meio de diversos editais, entre eles, Pensa Rio – Apoio ao Estudo de Temas Relevantes e Estratégicos para o Estado do Rio de Janeiro e o Auxílio à Pesquisa (APQ 1). 


O dispositivo despertou o interesse da liga de futebol americano, nos Estados Unidos, e do Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio). O trabalho foi apresentado em fórum das Organizações das Nações Unidas (ONU), em junho de 2016, como uma das propostas da Fiocruz para reduzir a mortalidade neonatal mundial, principalmente em países de baixa e média renda. Em julho de 2016, Rozental recebeu o prêmio Saving Lives at Birth, consórcio que reúne seis entidades, entre elas a Fundação Bill & Melinda Gates, com o objetivo de dar apoio a recém-nascidos e às mães durante o trabalho de parto, principalmente em regiões sem assistência médico-hospitalar adequada. Selecionado entre 50 finalistas – entre 750 candidatos de 78 países – o médico brasileiro foi o vencedor na categoria People’s Choice Award, projeto mais votado pelo público.


De acordo com o pesquisador, a equipe já concluiu um protótipo funcional de baixo custo (em torno de US$ 60), o “BabyThermocrown África” (Fig. 1), que representa uma pequena fração do custo de equipamentos congêneres de hipotermia disponíveis no mercado. Ele destaca que se trata de um modelo viável financeiramente para populações de países de baixa e média renda, e que pretendem começar os ensaios clínicos com o equipamento no Brasil e em um país Africano.

Pesquisador: Renato Rozental
Instituições: Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Fomento: Editais Pensa Rio e Start-up Bio, e Auxílio à Pesquisa (APQ 1)