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Publicado em: 07/04/2005
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Lupus e patologias narcísicas: existe relação?

Marina Lemle

 

O diagnóstico e o tratamento de pacientes que sofrem de dor psíquica e a denominam ora de depressão, ora de anestesia, ora de sensação de não existir têm sido o principal desafio da vivência clínica e acadêmica do psiquiatra Julio Sergio Verztman, da UFRJ. Nos últimos anos, o foco de sua investigação se ampliou para as doenças auto-imunes - em especial o lupus -, que parecem manter uma relação direta com a melancolia e as patologias narcísicas. Este é o tema do projeto que Verztman desenvolve desde 2004 com financiamento do Programa Primeiros Projetos, da FAPERJ. Intitulado Patologias Narcísicas e Doenças Auto-Imunes: Estudo Clínico Comparativo Sob a “tica da Psicanálise, o estudo é o assunto da segunda reportagem da série semanal de difusão científica do Boletim da FAPERJ.

 

A partir do estudo da melancolia, Verztman percebeu novas possibilidades de entendimento para muitos dos quadros clínicos baseados em uma modificação narcísica permanente. Essa transformação seria ocasionada pela identificação precoce e ambivalente com um objeto, em torno do qual a vida do melancólico passa desde cedo a girar: o objeto narcísico. “A perda desse objeto, seguida de um processo impossível de luto, é capaz de explicar a vida sem calor ou imersa na dor que os pacientes expressavam”, diz o pesquisador.

 

Sigmund Freud não fornece nenhuma referência clínica sobre a viabilidade do tratamento psicanalítico de melancólicos, mas, segundo Verztman, ele inventou um instrumental teórico que capacitou outros psicanalistas a se lançarem nesta tarefa – ele, inclusive.

 

Verztman acredita que as patologias narcísicas dividem com a melancolia o fato de se organizarem em torno de uma perda narcísica capaz de suscitar diferentes respostas individuais. Em seu projeto, ele avalia a relação uma categoria clínica ainda pouco explorada no campo psicanalítico: as doenças auto-imunes. A metodologia associa a pesquisa clínica com o instrumental psicanalítico. “Sigo a proposta freudiana de fazer das atividades de pesquisa e tratamento uma só prática, unidas pelo compromisso ético com a diminuição do sofrimento humano”, conclui o psiquiatra.

 

O trabalho é conduzido em conjunto com a professora Teresa Pinheiro, do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, e conta com a colaboração do serviço de colagenoses do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ.

 

Nesta entrevista ao Boletim da FAPERJ, Verztman desenvolve o tema de sua pesquisa.

 

O que é narcisismo para a psicanálise?

O adulto projeta sobre a criança uma série de fantasias de perfeição. Esse modelo básico foi resumido por Freud pela expressão “sua majestade o bebê”. Com isso, o bebê passa a ter uma primeira versão unificada de si mesmo e uma possibilidade de existir como entidade separada do outro. Freud chega a afirmar que o eu, como primeiro objeto de amor, desempenha o papel de reservatório de libido e reenvia partes desse reservatório para os demais objetos do ambiente, num contínuo movimento de ir e vir.

 

Por que isso acontece?

O investimento narcísico ocupa um certo papel de origem, de algo que deve ser incondicionado para que a relação do sujeito com o mundo carregue a marca da singularidade.

 

O que é objeto narcísico?

A noção de objeto narcísico que postulamos é uma leitura particular desta hipótese freudiana sobre o narcisismo. Objeto narcísico seria um objeto que dá consistência ao eu, um objeto sem o qual a sensação de existir se esvai e a estranheza com relação a si passa a ser a marca de uma vida. Isso contraria o modelo anterior do eu como objeto incondicionado de amor. A hipótese de Freud sobre a melancolia gira, entre outros fatores, em torno do melancólico ter se identificado precocemente com um objeto desse tipo, numa espécie de identificação totalizante, sem brechas, o que ele chamou de identificação narcísica. Freud chegou a propor que o quadro da depressão melancólica se desenvolveria em função da perda do objeto ao qual o sujeito identificou-se narcisicamente, sendo esta uma perda inconsciente, proposição até hoje controversa.

 

Quais são as patologias narcísicas?

O termo “patologias narcísicas” refere-se a uma ampla gama de configurações subjetivas em que podemos incluir, além da melancolia, os denominados “casos limite”, as “personalidades narcísicas” da psicanálise norte-americana, aqueles considerados grandes somatizadores, os sujeitos descritos por Winnicott como organizados em torno do falso self, e ainda outras organizações que se definem a partir de sintomas tais como dependência química e transtornos alimentares.

Quais as semelhanças entre essas patologias?
Guardadas as devidas diferenças, é na tônica depressiva que se pode observar um traço comum entre elas. Consideramos ainda que esses quadros clínicos só podem ser compreendidos e tratados se operarmos uma inversão teórica no sentido de fornecer à noção de narcisismo toda sua potência. Uma aproximação da metapsicologia da melancolia, descrita por Freud em 1917, com a teoria do trauma, apresentada por Ferenczi, nos permitiu compreender que esses pacientes dispõem de um mesmo modo de ordenação psíquica, mesmo apresentando um leque de sintomas que pode ser  bastante amplo e diverso.

Que tipo de doenças auto-imunes se manifestam nesses pacientes?

Nossa pesquisa pode ser considerada um estudo exploratório sobre este universo das patologias narcísicas. A partir de dados empíricos fornecidos pela experiência clínica e por algumas referências da literatura, decidimos verificar a seguinte hipótese: alguns sujeitos portadores de uma determinada doença auto-imune, o lupus eritematoso sistêmico (LES), teriam uma configuração psíquica narcísica. Como a melancolia funcionava como paradigma de funcionamento narcisico, nosso trabalho tomou a forma de um estudo comparativo entre sujeitos melancólicos e pacientes lupicos, tendo como parâmetro a clínica psicanalítica. É importante ressaltar que não possuímos nenhuma abordagem causal quanto a fatores físicos ou psicológicos implicados nessa doença, nem pretendemos realizar estudo quantitativo para saber a incidência ou prevalência de doenças auto-imunes entre pacientes melancólicos ou com patologias narcisistas, de modo que não podemos responder satisfatoriamente a esta questão.

 

Quais as descobertas?

Depois de dois anos e meio de estudo, com metodologia qualitativa, encontramos uma grande diversidade de organizações psíquicas na amostra de pacientes lupicas, o que contraria a proposta de que tal doença implicaria num modelo próprio de funcionamento psicológico. Mesmo assim, ainda surpreende o fato de essa pequena amostra conter um contingente significativo de pessoas com patologias narcísicas.

 

Há perspectivas de tratamento unificado dos sintomas físicos e
psicológicos?

Como não acreditamos numa causa psicológica para as doenças auto-imunes, também não defendemos uma proposta terapêutica reducionista, na qual uma forma única de tratamento possa ser eficaz para uma doença multifatorial como o lupus. Isso não quer dizer que os diversos tratamentos necessários no cuidado a estes pacientes não possam se articular. Pelo contrário. Fazemos uma sólida parceria com o serviço de colagenoses do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, que nos encaminha as pacientes lúpicas e trabalhamos em conjunto.

 

Quais os resultados desse trabalho?

Um fato que nos surpreendeu foi a grande adesão dessas pacientes, tanto as lupicas quanto as melancólicas, ao tratamento psicanalítico e os efeitos disso sobre suas vidas. Muitas destas pessoas não conseguiam sentir a continuidade do viver, nem percebiam que o futuro pode ser diferente do presente e do passado. Elas aprenderam que as palavras podem ter múltiplos significados, que seus corpos podem ser a sede de uma experiência de intimidade, que viver pode significar agir ou que desejar também faz parte do existir humano. Muitas modificaram alguns hábitos existenciais. São inegáveis os efeitos do tratamento psicanalítico para a grande maioria de nossa amostra.

 

Como esses efeitos foram alcançados?

Foi necessário repensar alguns aspectos da clínica psicanalítica, principalmente sobre o papel do analista e suas intervenções. Entre os pacientes com patologias narcísicas, o analista vem funcionando como um testemunho que atesta permanentemente a existência desses sujeitos, que confere, através de sua intervenção, alguma estabilidade à imagem narcísica, sempre prestes a ruir.

 

E qual a diferença para a psicanálise clássica?

É bastante diferente do papel do analista na análise clássica das neuroses, sobretudo da histeria. Mesmo com estas diferenças, e isto é notável, temos fortes indícios de que este dispositivo, sem duvida baseado na psicanálise, pode ter impacto terapêutico positivo para sujeitos com patologias tão graves.

 

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