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Publicado em: 25/03/2021
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Antropóloga investiga religiosidade de povo indígena

Juliana Passos

Culto evangélico recebe grande adesão do povo Wari'. A aproximação 
missionária começou ainda na década de 1950 Fotos: Arquivo pessoal

Foi na década de 1980 que a antropóloga Aparecida Maria Neiva Vilaça estabeleceu os primeiros contatos com o povo Wari’ (que se escreve assim mesmo), em Rondônia, e, no mesmo período, publicou sua dissertação, um dos primeiros trabalhos sobre a etnia. Professora titular no Museu Nacional (MN), unidade de ensino e pesquisa ligada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de lá para cá, a relação só se intensificou, seja no âmbito acadêmico, quanto fora dele. Ainda no período do mestrado, ela “ganhou” um pai Wari’ e sua experiência rendeu livros destinados ao público não especializado, incluindo o premiado "Paletó e eu: memórias de meu pai indígena" (Edit. Todavia, 2018, 209 pág.). Entre as fontes de financiamento para a sua pesquisa pessoal e também dos membros do Laboratório de Inovações Ameríndias, coordenado por Aparecida, está o programa Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ.

"Fui adotada em 1987 pelo meu pai Paletó. Era um homem muito sábio, muito inteligente. O maior conhecedor da mitologia Wari’ e que me ensinou muita coisa sobre os Wari’ e sobre a vida. Ele veio ao Rio três vezes e faleceu em janeiro de 2017, mas não consegui chegar a tempo do velório e para elaborar a dor, escrevi um livro sobre a nossa relação", conta. O livro ganhou o prêmio Casa de Las Américas em 2020 e despertou o interesse da editora da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Nessa obra, ela se dedica a apresentar uma questão bastante especial sobre o povo Wari', o canibalismo, para o leitor leigo no assunto, mas "sem achatar, sem ser superficial".

O canibalismo foi tema da dissertação da antropóloga, mas ela não entrou em contato com os Wari' por isso. A decisão de se aprofundar na etnia partiu de uma decisão junto a seu orientador, Eduardo Viveiros de Castro, uma vez que ainda existiam poucos estudos na região. E quinze dias depois de sua primeira ida a campo, houve o funeral de uma criança. Então, explicaram a ela que em outros tempos, a criança seria comida, como parte do ritual. De acordo com diversos estudos, as práticas canibais são as primeiras a desaparecer após o contato com os não-índios. Aparecida explica que logo após os primeiros contatos, os Wari' esperavam a saída dos funcionários do SPI (Serviço de Proteção ao Índio) para praticar seus rituais funerários, mas com o tempo, a prática foi deixada de lado.

Reeditado em 2017 pela editora MauadX, sua dissertação "Comendo como gente: formas do canibalismo Wari'" fala das formas de canibalismo adotadas. Antes da chegada dos não-índios, havia um maior número de conflitos entre as etnias. Nesses enfrentamentos, os inimigos mortos em combate eram levados para a comunidade para serem comidos, como parte do ritual de guerra. No entanto, os guerreiros não comiam o inimigo morto, porque tinham em seus corpos o sangue do inimigo e ficavam em repouso para engordarem e depois engordarem as suas mulheres. Era um modo de se tornarem homens adultos, aptos a terem filhos. Há ainda outra modalidade de canibalismo, o funerário. Nela, o corpo da pessoa falecida integrante da comunidade é deixado apodrecer por alguns dias. Então parentes distantes são convocados para comer esta carne praticamente intragável e o que não for ingerido, a maior parte, é queimado, explica Aparecida. "É um serviço funerário para fazer o corpo desaparecer e assim amenizar o luto da familia. Quando o corpo desaparece - comido ou queimado - ele tem o espírito liberado para a vida póstuma. Depois disso, os parentes ficam em luto por meses, e quando decidem acabar com o luto, fazem uma caçada coletiva. Na volta da caçada, todos choram em cima daquela caça e cantam o mesmo canto fúnebre do funeral. É uma espécie de um ritual de passagem do morto".

A religiosidade é um dos principais temas abordados nessas mais de três décadas de pesquisa, em que a pesquisadora pode entender de forma detalhada a aproximação evangélica e adoção da nova religião. A chegada dos missionários evangélicos e católicos ocorreu entre 1956 e 1961. Foi um período de grandes epidemias entre os indígenas, especialmente de gripe, pneumonia e malária, pois os agentes do contato não se prepararam adequadamente, tanto em termos de cuidados com a saúde dos participantes como em relação à disponibilidade de medicamentos.

"Como em todos os lugares do mundo, os missionários evangélicos se aproximam para aprender a língua e falam pouco de religião. Depois de 10 anos na região, eles aprenderam o idioma Wari' e traduziram o livro 'Gênesis'. A partir daí o trabalho religioso ganha força", conta a pesquisadora. Já a presença dos católicos ficou restrita ao ensinamento de uma disciplina cotidiana aos moldes ocidentais e atualmente se dá na forma de apoio à organização política dos povos da região, através do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Aparecida Vilaça (esq.) ao lado do pai Paletó e os netos dele. Paletó é
um exemplo do não dogmatismo e da adoção de crenças por períodos

Como ocorre entre muitos povos amazônicos, os Wari' não costumavam fazer uma separação entre seres humanos e os outros animais, não há o entendimento da natureza como algo à parte. Nessa maneira de ver o mundo, os animais têm sua própria cultura, hábitos, fazem festas e cerimônias. O responsável por explicar e fazer essa ponte entre animais e humanos são os xamãs ou pajés. "Os Wari' se converteram inicialmente porque estavam muito desorientados em meio a um período de muitas doenças, para as quais os missionários chegaram com medicamentos de eficácia quase imediata, como os antibióticos. Encantaram-se também com o Gênesis bíblico, no qual Deus tira a agência dos animais e os coloca a serviços dos humanos, protegendo-os assim das doenças causadas pelos animais", detalha Aparecida.

A pesquisadora, no entanto, considera que esta é uma conversão não dogmática. "Não gosto da ideia de sincretismo. Entendo que os povos que vivem na Amazônia, vivem numa alternância. Eles não têm uma ideia de crença enraizada e entendem essa possibilidade de crenças diferentes, então passam de uma para outra", diz.

De acordo com a antropóloga, as formas diferentes de compreensão de mundo não aparecem apenas nos espaços religiosos, mas nas diversas esferas do cotidiano, como na educação. "As escolas da região recebem o mesmo material destinado às áreas rurais e neles se ensina que animais e plantas não têm agência, sendo submissos aos humanos, indo de encontro ao conhecimento tradicional dos Wari' e outras etnias indígenas da região", complementa. Para a pesquisadora, essa outra maneira de relação entre humanos e natureza é um ponto importante para pensar soluções para a crise climática e surgimento de zoonoses. E não só. Essa seria uma maneira de entender o mundo de maneira mais holística. Na visão dela, o cristianismo abre caminhos para o individualismo, uma vez que prega uma relação individual com Deus, assim como a submissão da natureza aos humanos. "O cristianismo vem junto com uma série de coisas, como a monetarização, a escolarização. Eles caminham juntos. O cristianismo sozinho não faria essa mudança de compreensão de mundo", argumenta.

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