O seu browser não suporta Javascript!
Você está em: Página Inicial > Comunicação > Arquivo de Notícias > A tortuosa trajetória da loucura ao longo da história da medicina brasileira*
Publicado em: 21/06/2018 | Atualizado em: 26/09/2018
ATENÇÃO: Você está acessando o site antigo da FAPERJ, as informações contidas aqui podem estar desatualizadas. Acesse o novo site em www.faperj.br

A tortuosa trajetória da loucura ao longo da história da medicina brasileira*


Vilma Homero

Litografia imperial de Eduardo Rensburg, de 1856, mostra a fachada do
Hospício 
de Pedro II, na Praia Vermelha (Imagens: Reprodução)

Males como epilepsia, histeria, loucura puerperal e paralisia enumeravam-se, no século XIX, entre as chamadas doenças nervosas. Dizia-se ainda que os casamentos entre parentes – as alianças consanguíneas – poderiam deixar uma herança funesta: a predisposição às doenças de cunho nervoso sobre a descendência. Em vista do parco conhecimento e das indefinições que cercavam o tema, a elite médica da época propunha-se não apenas a refletir sobre o tema, como a estabelecer suas concepções de tratamento.

Ao se debruçar sobre o passado da medicina direcionada às doenças mentais, a historiadora Monique de Siqueira Gonçalves, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), decidiu acompanhar a construção e os primeiros anos de funcionamento do Hospício de Pedro II – o primeiro hospital em toda a América Latina construído especificamente para tratar alienados, cujo estado mental fosse passível de cura. Ao mesmo tempo, ela procurou analisar, em sua tese de doutorado, como foi sendo elaborado, no País, o conhecimento clínico a respeito das doenças nervosas e como foram sendo desenvolvidas as formas de tratamento para elas. “Procurei matizar pontos de vista, tentando entender como médicos e sociedade pensavam a ciência, e como era a dinâmica de funcionamento dos ambientes clínicos”, explica a pesquisadora, que contou com recursos do programa de Pós-Doutorado Nota Dez, da FAPERJ. A pesquisa foi bem além da conclusão do doutorado, material que rendeu dois livros: Mente sã, corpo são: disputas, debates e discursos médicos na busca pela cura das “nevroses” e da loucura na Corte Imperial (1850-1880) – a tese de doutorado propriamente dita, apresentada em 2011 ao curso de pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) – e outro, ainda em andamento, sobre José Luiz da Costa, médico que tratando de doenças mentais percebeu em si mesmo os sintomas de um surto, e escreveu sobre sua experiência.

Foram as críticas ao tratamento dispensado aos alienados até então que suscitaram a criação de um hospital em que o tratamento – e não o simples isolamento – fosse o principal objetivo. Até porque, vistas hoje, práticas da época parecem, no mínimo, bárbaras. Os exemplos são muitos. Na Santa Casa de Misericórdia, por exemplo, não se hesitava em emborcar o paciente em surto em banheiras de água fria, em colocá-lo em camisolas de força, ou até mesmo, além dos diversos medicamentos, em recorrer ao açoite e ao isolamento em celas para conter acessos de fúria. Mas se tais condições eram corriqueiras, havia ainda o temor da sociedade a respeito dos muitos alienados que vagavam pelas ruas da cidade, segundo diversas autoridades, colocando em risco a integridade física dos cidadãos de bem.

O fato é que a partir de 1830, as denúncias da Comissão de Salubridade Geral da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro passaram a enumerar, além dos maus tratos e das condições higiênicas inadequadas, “a falta de um tratamento físico e moral apropriado, tal como a ausência de um médico especializado e de enfermeiros competentes” para atender esses doentes. Tais constatações apontavam para a criação de um estabelecimento especialmente dedicado ao tratamento de alienados – o que, até então, inexistia na corte do Rio de Janeiro.  

Monique mergulhou em relatórios de diretores, documentos oficiais e cartas da administração do Hospício de Pedro II, que seria fundado em 1852; nos debates da Academia Imperial de Medicina; em artigos médicos publicados no Annaes Brasilieses de Medicina e em outros periódicos especializados da capital do império, além de se debruçar sobre 35 teses médicas escritas sobre diferentes moléstias de cunho nervoso, defendidas de 1850 a 1880, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Com este vasto material, ela pôde analisar como, no debate que teve lugar na imprensa e nas publicações especializadas da época, os médicos procuravam atestar não apenas seu conhecimento clínico, mas firmar seu status profissional como os “especialistas”, a quem cabia determinar a sanidade ou a loucura de um paciente.

Em 1841, a proposta para a criação de um hospital especializado ao imperador Pedro II foi aprovada naquele mesmo ano, e se seguiu uma campanha de subscrições para a construção, para a qual contribuiu até mesmo o imperador. O local escolhido foi a Praia da Saudade, no que eram então os arrabaldes da cidade, e onde é hoje a Praia Vermelha. Para definir a parte clínica do futuro hospício, o médico Antonio José Pereira das Neves partiu, em 1843, rumo a Europa, encarregado da importante missão de verificar o que era feito em termos de tratamento mental em países como Itália, França e Inglaterra. Depois de visitar diversas instituições europeias, Neves voltou quatro anos mais tarde, trazendo na bagagem vários trabalhos de especialistas daquele continente.

Ao abrir as portas, em 1852, o “Palácio dos Loucos” – como começou a ser chamado informalmente o Hospício de Pedro II – tornou-se a primeira instituição especializada no tratamento da loucura no Brasil e na América Latina. Exatamente por isso, passou a receber pacientes não só da corte, como de todas as províncias de um canto a outro do País e até de países vizinhos. “É nesse contexto que podemos observar o esforço dos médicos, empenhados na consolidação de sua ingerência sobre o tratamento das doenças mentais, e sobretudo na elaboração de um arcabouço médico-científico que desse conta desses distúrbios”, destaca Monique.

Esse arcabouço se baseava não apenas no que defendia o médico francês Philippe Pinel e seu discípulo Étienne Esquirol, mas também nas próprias concepções e observações dos médicos da corte. “Vale lembrar que, à época, não havia especialidade em medicina mental, uma vez que não havia, nas faculdades do império, uma formação específica. A psiquiatria, como especialidade, só se consolidaria na década de 1880. Na prática da profissão, no entanto, os médicos se valiam de um grande amálgama de influências teóricas do exterior para se embasar e adaptar à prática do tratamento”, explica a historiadora.

O desenvolvimento desse saber suscitava uma ampla discussão sobre a natureza da loucura e das demais doenças nervosas, levantando divergências tanto no plano do diagnóstico quanto no terreno da terapêutica. “Para os médicos, a pergunta era se essas doenças seriam consequência de distúrbios orgânicos diversos, se estavam relacionadas a problemas no sistema nervoso, no aparato cerebral, ou se seriam doenças da alma. Eram perspectivas que ora se contrapunham, ora se complementavam”,  prossegue Monique. Ao mesmo tempo, mudavam-se os paradigmas da medicina. No caso das doenças mentais, apesar da expectativa de que um dia fossem localizadas as lesões anatomopatológicas que as definissem, pelo pouco que se sabia, os clínicos ainda tateavam no escuro. A tese mais aceita era de que os distúrbios mentais estariam relacionados  a  “influências psíquicas”; para outros, eram resultado de “impressões morais” ou de “desregramentos”. “Os maus hábitos, as paixões, os desgostos e os abalos morais eram considerados como causas determinantes, que, em vista da predisposição de certos indivíduos, poderia estar associada a outras causas, como herança familiar, idade, estados patológicos, continência e até alimentação. Entre esses vários fatores, se definiriam os estados mórbidos classificados genericamente como ‘nevroses’”, explica a pesquisadora.

No interior do Hospício de Pedro II, o dormitório com camas especiais
para epiléticos revela um pouco da rotina dos pacientes internados 

Mesmo mantendo o foco no aspecto curativo do tratamento mental, no entanto, o recém-inaugurado Pedro II abria suas dependências em 1852 praticamente lotado. Embora o projeto clínico já significasse um avanço, uma vez que ali se procuraria separar os pacientes de acordo com sexo, idade e diagnóstico, além da separação por classes (1ª, 2ª, 3ª e indigentes) – nos moldes do que era feito na Europa –, a realidade do funcionamento da instituição dificultou essas intenções iniciais. Espaço de atendimento conceituado nos anos 1850, o Pedro II não tinha como abarcar o volume de doentes que o buscaram desde o primeiro dia de funcionamento. As deficiências estruturais do próprio espaço, em choque com os problemas de superlotação, tornaram inviável obedecer a protocolos clínicos como o da separação de pacientes. E a essas deficiências espaciais somaram-se a outros problemas, como o da má remuneração do corpo clínico, o que também dificultou que se trouxessem especialistas de fora; e o baixo nível de formação dos enfermeiros. “Tudo isso inviabilizou a prática das teses terapêuticas preconizadas. O que o projeto clínico tinha de modernizador não se sustentava no confronto com a realidade. Pouco a pouco, o hospital passou a atuar exatamente como tudo aquilo que combatia. Sem ter seu programa terapêutico inteiramente implantado, passou a receber alienados sem perspectiva de cura e indigentes; e apesar dos esforços para sua manutenção, o hospital vai se tornando terapêutica e economicamente inviável”, diz a historiadora.

Em 1858, o hospício programado para abrigar 300 pacientes, já contava com 335, dos quais 262 indigentes. Para conter esta demanda, a direção passou a exigir que os pedidos de internamento incluíssem um comprovante de que os candidatos a pacientes não eram "reconhecidamente idiotas, imbecis, epiléticos ou paralíticos dementes, que se reputavam incuráveis", voltando a bater na tecla de que o Pedro II não era uma instituição de recolhimento indiferenciado, mas um estabelecimento terapêutico, que visava à  cura.

Mas a procura por vagas mantinha-se um problema crescente. A fim de se eximirem de despesas, donos de escravos alienados os alforriavam para que, sem ter como pagar, eles fossem tratados como indigentes. Da mesma forma, praças do Exército e da Armada, assim como pensionistas de origens diversas, depois de terem despesas pagas durante algum tempo pelos órgãos responsáveis, ao perderem esperança de alta, eram deixados no hospício. Até mesmo colonos estrangeiros com sinais de alienação mental foram abandonados ali. Em 1857, tudo isso levou o diretor médico Manoel José Barbosa a declarar em carta ao provedor marquês de Abrantes: “Se as admissões continuassem daquela forma, em breve teriam que fechar as portas aos doentes para os quais o hospício fora construído, ou seja, os alienados passíveis de cura”.

Com os primeiros dez anos de funcionamento plenos de dificuldades, o Hospício de Pedro II vê seu prestígio oscilar das expectativas surgidas à época da inauguração ao descrédito. Nos anos 1870, novos investimentos possibilitam a construção de novas alas e, com elas, as tentativas de retomar o rumo original. “Na década seguinte, 1880, o nascimento da psiquiatria, baseada em paradigmas alemães, traz o empoderamento dos médicos, que, com isso, passam a ter maior força de pressão”, lembra a pesquisadora.

Ao mesmo tempo, motivados pelo enorme afluxo de alienados para o Rio de Janeiro após a abertura do Pedro II, novos hospitais particulares para doenças mentais vão sendo inaugurados na corte e em outras províncias, ampliando as opções das famílias mais abastadas, que não desejavam ver seus familiares “misturados a todo tipo de gente”. “Os anúncios de casas de saúde particulares, nos jornais de meados do século XIX, mostram que à medida que o conhecimento da medicina mental no País começa a se consolidar, em vez de espaços de reclusão, cada vez mais a proposta é de efetivo tratamento”, reitera Simone.

No final do século XIX, a criação de colônias para alienados na ponta da Ilha do Governador, assim como de asilos para mendigos, ajuda a desafogar o Pedro II. Na medida em que, no século XX, o modelo asilar vai sendo desacreditado, mais mudanças vão sendo introduzidas, dentro das novas teorias psiquiátricas. Mas ao mesmo tempo, o crescimento urbano provoca modificações no entorno daquele ponto da Praia Vermelha, que progressivamente deixa de ser o lugar bucólico de outrora. Em 1944, após a transferência dos pacientes para outras instituições, o hospício foi fechado. Cinco anos mais tarde, suas edificações foram doadas à Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que instala ali o seu campus. E a única lembrança do que era o antigo Hospício de Pedro II ficou sendo o atual Instituto Philippe Pinnel, inaugurado em 1937.

*Reportagem originalmente publicada  em Rio Pesquisa, Ano IX, Nº 39 (Junho de 2017)

Compartilhar: Compartilhar no FaceBook Tweetar Email
  FAPERJ - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
Av. Erasmo Braga 118 - 6º andar - Centro - Rio de Janeiro - RJ - Cep: 20.020-000 - Tel: (21) 2333-2000 - Fax: (21) 2332-6611

Página Inicial | Mapa do site | Central de Atendimento | Créditos | Dúvidas frequentes