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Publicado em: 23/02/2017
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Samba, a voz do Rio*

Débora Motta

O samba reflete a força da cultura afro-brasileira na
região da Grande 
Madureira  (Foto: Edu Monteiro)

Se o samba no Brasil tivesse uma certidão de nascimento, essa seria a gravação de Pelo Telefone, considerado o primeiro registro fonográfico desse gênero musical. Composta por Ernesto dos Santos, vulgo Donga, e Mauro de Almeida, em 1916 – conforme consta no registro da partitura depositada na Biblioteca Nacional –, a música foi concebida em um famoso terreiro de candomblé, a casa da baiana Tia Ciata, na Praça Onze, frequentada por grandes músicos da época. Os versos, imortalizados pela gravadora Odeon, são conhecidos popularmente até hoje: O chefe da polícia pelo telefone veio avisar/que na Carioca tem uma roleta para se jogar/. De lá para cá, o samba, esse jovem senhor que em 2016 completou cem anos, se consolidou como uma importante faceta da identidade cultural carioca.

Para investigar o cenário atual desse gênero musical e da cultura afro-brasileira na capital fluminense, um projeto de pesquisa desenvolvido na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), sob a coordenação da socióloga e professora Myrian Sepúlveda dos Santos, teve como desdobramento o livro Nos quintais do samba da Grande Madureira – Memória, história e imagens de ontem e hoje (Ed. Olhares, 2016, 160 p.), contemplado pela FAPERJ, por meio do edital Apoio à Produção e Publicação de Livros e DVDs Visando à Celebração dos 450 Anos da Cidade do Rio - 2014. Esse projeto é um produto do Museu Afrodigital Rio (www.museuafrorio.uerj.br), por sua vez, contemplado pela Fundação em 2009, com o edital Pensa Rio – Apoio ao Estudo de Temas Relevantes e Estratégicos para o Estado do Rio de Janeiro.

Madureira, o subúrbio que dá samba

Localizada no coração da Zona Norte do Rio, a região de Madureira é apontada pelos historiadores do assunto como tendo desempenhado papel primordial no nascimento e consolidação do samba carioca e das manifestações culturais, religiosas e culinárias de matriz afro-brasileira. A chamada Grande Madureira é uma região administrativa formada por vários bairros tradicionais da Zona Norte, mais precisamente Bento Ribeiro, Campinho, Cascadura, Cavalcante, Engenheiro Leal, Honório Gurgel, Madureira, Marechal Hermes, Oswaldo Cruz, Quintino Bocaiúva, Rocha Miranda, Turiaçu e Vaz Lobo.

Desses bairros, Madureira e Oswaldo Cruz, vizinhos, são considerados berços do samba carioca. Essa área, que sedia duas escolas de samba – Portela e Império Serrano – e tem o maior mercado popular do Brasil – o Mercadão de Madureira –, ainda preserva a tradição dos antigos festejos realizados nos quintais das casas da região, das “tias” do samba, de mães e pais de santo, compositores e intérpretes, jongueiros e cozinheiras.

Assim, na Grande Madureira, tradição e contemporaneidade se misturam. Há uma ressignificação desses tradicionais quintais de bambas nas festas das quadras das escolas de samba, na Feira das Yabás – realizada mensalmente em Oswaldo Cruz, quando em homenagem aos orixás femininos, mulheres negras que são lideranças comunitárias oferecem comidas tipicamente brasileiras, com um toque africano –, nas festas no Parque Madureira, nos bailes charme do Viaduto de Madureira, nas procissões e carreatas em homenagem a São Jorge, em abril, e a Iemanjá, em dezembro, nas escolas de samba mirins, no Jongo da Serrinha e no Trem do Samba, evento idealizado pelo cantor e compositor Marquinhos de Oswaldo Cruz, com o objetivo de imortalizar o bairro do subúrbio carioca como um território sagrado do samba.

As raízes dessa riqueza cultural são retratadas na obra Nos quintais do samba da Grande Madureira. “Escolhemos a região de Madureira como tema do livro porque é importante dar uma visibilidade maior a ela. Muito se escreve sobre a contribuição cultural da Zona Sul, com destaque para Copacabana, mas a cultura é um cenário de disputas de poder. Há uma hierarquia entre as zonas Sul e Norte, além das outras zonas da cidade. Essa valorização da cultura de Madureira, em última instância, representa a valorização da Zona Norte”, justifica Myrian, que coordena na Uerj o grupo de pesquisa Arte, Cultura e Poder. “Por outro lado, a região recebeu algumas intervenções urbanas por conta dos Jogos, como a criação do Parque Olímpico de Madureira, e quisemos fazer um registro dela a partir das nossas perspectivas”, completa.

Organizado por Myrian, o livro tem como coautores os pesquisadores Maurício Barros de Castro, Maria Alice Rezende Gonçalves, Gabriel da Silva Vidal Cid e Ana Paula Alves Ribeiro, além do fotógrafo, artista e pesquisador Edu Monteiro. Trata-se de uma coletânea de artigos sobre os diferentes objetos de estudo dos autores, com uma proposta interdisciplinar, que reúne olhares da história, cultura, antropologia e educação. Ricamente ilustrada, a obra tem dois capítulos dedicados a imagens históricas – algumas imortalizadas pelas lentes do fotógrafo Augusto Malta nos anos 1920 e 1930 – e contemporâneas da Grande Madureira. “A fotografia pode ser considerada uma narrativa por si só na obra, que também tem como destaques a história do samba em Madureira e as suas diversas formas de expressão popular”, pontua a socióloga.

A equipe reunida: a partir da esq., a organizadora Myrian,
Maria Alice, Gabriel, Maurício e Ana Paula (Foto: Divulgação)

Os outros capítulos, que convidam o leitor a fazer um passeio pelo patrimônio cultural afro presente no subúrbio carioca, são “O samba é meu dom” (assinado por Myrian), “As tias cariocas e os quintais da Grande Madureira: a construção de um ‘berço do samba’” (de Maurício), “A Feira das Yabás: Mulheres negras abençoadas pelos orixás femininos” (de Maria Alice), “Memória e patrimônio cultural na região da Grande Madureira” (de Gabriel), e “Tem criança no samba... ou As três décadas do GRCESM [Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba Mirim] Império do Futuro” (de Ana Paula). “Esse livro é resultado da nossa pesquisa relativa ao desenvolvimento do Museu Afro Digital. Todos os pesquisadores que assinam o livro também fazem parte do projeto do museu”, explica Myrian.

Em “O samba é meu dom”, título escolhido em homenagem à música de Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro, Myrian faz uma breve introdução da obra e destaca os aspectos históricos que fazem da Grande Madureira um lugar simbólico para os cariocas. “Madureira, como outros bairros vizinhos, surgiu em meados do século XIX. Naqueles anos, grandes fazendas de cana-de-açúcar, solapadas pela crise econômica, foram loteadas, atraindo uma população diversa. Dentre os que chegavam à região estavam os descendentes daqueles africanos que haviam sido escravizados. Eles deixavam as fazendas de café do Vale do Paraíba, também em crise, à procura de trabalho e de uma nova vida como libertos. Nas primeiras décadas do século XX, diversos aspectos, como a construção de vilas operárias, a chegada dos trens e dos bondes, e o custo mais baixo das moradias, fizeram de Madureira e dos bairros vizinhos uma área residencial para as camadas populares”, conta.

Professor do Instituto de Artes e do Programa de Pós-Graduação em Artes da Uerj (PPGARTES), Maurício Barros de Castro retrata o cotidiano da cultura popular no capítulo “As tias cariocas e os quintais da Grande Madureira: a construção de um ‘berço do samba’”. Para ele, se as escolas de samba, Portela e Império Serrano, definem a identidade de Madureira e Oswaldo Cruz, os quintais são os lugares onde as práticas rituais que consolidaram as agremiações se desenvolvem até hoje. “A ligação entre os quintais e as escolas é evidente. Tia Surica, pastora da Velha Guarda da Portela, mantém no seu quintal animadas e importantes rodas de samba. Da mesma forma, fazia Tia Doca, outra importante pastora da azul e branco”, explica.

Em “A Feira das Yabás: Mulheres negras abençoadas pelos orixás femininos”, Maria Alice, que é professora da Uerj, no Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura, Comunicação em Periferias Urbanas (PPGECC), descreve a rotina da feira gastronômica e cultural, organizada na Praça Paulo da Portela. “Todo segundo domingo de cada mês, em Oswaldo Cruz, 16 cozinheiras, lideranças negras da localidade, se reúnem na Feira das Yabás. Abençoadas pelos orixás femininos, oferecem comida e música aos seus frequentadores. As barracas são ordenadas em sequência nas calçadas da Praça Paulo da Portela. Nesse contexto, o alimento, além de proporcionar um prazer gustativo, serve de oferenda a um orixá. A feira é uma das atividades culturais que marca a presença afro-brasileira em Oswaldo Cruz”, relata.

Em “Memória e Patrimônio Cultural na Região da Grande Madureira”, Gabriel Cid apresenta a região como um território que impacta na constituição de memórias, tradições e histórias individuais e coletivas. “As transformações no espaço urbano pelo qual o Rio de Janeiro passava desde o final do século XIX, tanto em seu traçado, no que cabe às grandes obras realizadas pelo prefeito Pereira Passos, que se somaram à ampliação do espaço urbano com o crescimento do transporte público, quanto na nova configuração produtiva, com o fim da escravidão e a migração de milhares de pessoas vindas de outras regiões, reforçaram a região da hoje Grande Madureira como uma encruzilhada dos caminhos da cidade”, contextualiza. Ele explica os meandros do tombamento de bens em Madureira, com destaque para a casa que pertenceu a Dona Esther, personagem central na fundação da Portela.

Já no capítulo sobre a escola mirim Império do Futuro – uma das escolas mirins estudadas em sua tese de doutorado defendida na Uerj –, a antropóloga Ana Paula, que também é professora da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF) e do PPGECC/Uerj, analisa as origens da participação infanto-juvenil no samba. “Nas comunidades do Rio de Janeiro a transmissão de saberes e tradições se dá por meio da oralidade. Desde a fundação das escolas de samba, crianças e adolescentes participam ativamente, junto com suas famílias, das atividades dessas escolas, inclusive do desfile carnavalesco”, diz. A Império do Futuro surgiu em 1983, antes mesmo da criação da escola de samba mirim da Estação Primeira de Mangueira, com o objetivo de pensar o futuro da Império Serrano, escola fundada em 1947. “A iniciativa partiu de uma família do Morro da Serrinha, a família Cardoso dos Santos”, completa Ana Paula.

Um museu digital da cultura afro-brasileira

Colocando a Internet a serviço do patrimônio cultural afro-brasileiro, o Museu Afrodigital Rio tem por objetivo construir um acervo digital e exposições virtuais sobre as práticas daqueles que se identificam ou são identificados como afrodescendentes. “O principal objetivo do projeto é disponibilizar, na rede mundial de computadores, dados em forma de texto ou de audiovisual, para pesquisadores interessados na temática dos estudos étnicos e africanos e áreas afins. O Museu Afrodigital Rio atua na salvaguarda de fontes documentais e exposições virtuais, propiciando novas abordagens, histórias e olhares para a população de afrodescendentes no Brasil, democratizando o acesso à pesquisa, com uma linguagem de fácil compreensão ao público não acadêmico”, resume Myrian, coordenadora do museu.

Na feira das Yabás, realizada todo mês em Oswaldo Cruz,
é possível apreciar a gastronomia afro
(Foto: Edu Monteiro)

O Museu Afrodigital Rio insere-se em uma rede de museus, que surgiu por iniciativa do antropólogo Lívio Sansone e atualmente envolve, além da estação Rio de Janeiro, aquelas estabelecidas nas universidades federais da Bahia (UFBA), do Maranhão (UFMA), de Mato Grosso (UFMT) e Pernambuco (UFPE). Essas galerias atuam em rede, buscando a troca de informação em temas como a memória afro-brasileira, museus, patrimônios culturais e cultura digital. No Estado do Rio de Janeiro, buscou-se estabelecer o diálogo com instituições fluminenses. A iniciativa conta com a colaboração de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), e com parcerias internacionais, incluindo a Universidade de Coimbra, em Portugal, a Casa da África, em Cuba, e a Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Peru.

Reunida na sede do museu, localizada no 9º andar do edifício Francisco Negrão de Lima, da Uerj, no campus do Maracanã, a equipe de pesquisadores relembrou a evolução do projeto. Maria Alice lembra que o núcleo temático inicial do Museu Afrodigital Rio reunia exposições fotográficas; reportagens e processos crime sobre a prática da capoeira, a partir de pesquisa realizada no Arquivo Nacional; e um material inédito sobre o projeto Kalunga – uma expedição de músicos brasileiros a Angola, que foi resultado do pós-doutorado de Maurício, realizado com apoio da FAPERJ, pelo programa de Apoio ao Pós-Doutorado – PAPD, sob a supervisão de Myrian –, e registros sobre a militante negra Beatriz Nascimento, digitalizados a partir de uma parceria com a Biblioteca Nacional. “Hoje, o conteúdo disponibilizado pelo museu cresceu bastante. A proposta não é ter um acervo apenas do Rio de Janeiro, mas reunir informações sobre projetos de pesquisa de diferentes instituições do País sobre o universo afro-brasileiro”, resume Maria Alice, que coordena na instituição o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, na Faculdade de Educação da Uerj.

Por sua vez, Ana Paula, destaca a importância do trabalho de pesquisa em rede proposto pelos museus digitais. “A criação dessa rede de pesquisa sobre negritude começou com o projeto do Museu Afro Digital desenvolvido na UFBA, sob a coordenação do professor Livio Sansone, do Departamento de Antropologia da universidade baiana. Depois, surgiram os museus digitais da UFMA, coordenado por Sergio Ferretti, e da UFPE, liderado por Antônio Motta. Todos esses três tiveram o apoio da Finep [Financiadora de Estudos e Projetos]. Em 2009, o Museu Afrodigital Rio entrou no ar, com suporte da FAPERJ, através do edital Pensa Rio, e passou a integrar essa rede”, resume.

Nesse sentido, o Museu Afrodigital Rio apresenta a nobre missão de democratizar documentos e informações sobre a cultura afro-brasileira, produzir e preservar acervos, realizar cursos presenciais e a distância, e desenvolver plataformas digitais. Myrian ressalta a importância desse projeto para difundir na academia estudos sobre a temática afro-brasileira. “Precisamos ampliar os estudos sobre a questão afro-brasileira. Apesar da Uerj ter sido pioneira em relação à politica de cotas, no meu departamento, o de Ciências Sociais, poucos trabalham com esse tema e não há professores negros. Mesmo se considerarmos o conjunto de professores da Uerj, ainda são poucos os docentes negros. A valorização da cultura afro precisa ser incentivada”, conclui.

 *Reportagem originalmente publicada em Rio Pesquisa, Ano IX, Nº 37 (Dezembro de 2016)

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