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Publicado em: 09/12/2016
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 A cultura das periferias vai à universidade



Débora Motta

Heloísa: para ela, universidade deve quebrar sua
rigidez e dialogar com o popular
(Foto: Lécio A. Ramos)

Samba, hip hop, funk, grafite, batalha de poesia e outras formas de arte. A riqueza desse caldeirão cultural, que tem como berço as periferias urbanas e representa a identidade múltipla do povo brasileiro, ainda não é muito bem compreendida na universidade. Não que a cultura popular esteja excluída das pesquisas da área de humanidades. Ela é bastante presente. Mas, ainda assim, é na maioria das vezes tratada como um “objeto de estudo”, sem mais espaço para autoapresentações. No entanto, um projeto realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) dá um passo além no estudo da cultura das periferias, ao colocá-la não apenas como um fenômeno passivo a ser investigado pelos pesquisadores, mas como uma fonte viva de conhecimento popular, a ser compartilhada pelos próprios artistas e líderes das periferias com os acadêmicos – que também têm muito a aprender –, em debates realizados dentro dos muros da universidade. Trata-se da Universidade das Quebradas, um laboratório de tecnologias sociais.

“O nome do projeto é Universidade das Quebradas porque a gíria ‘quebradas’, no Nordeste e em São Paulo, quer dizer lugar distante, periférico. É ainda uma alusão à necessidade de a universidade quebrar sua rigidez e se abrir ao popular”, explicou a idealizadora e coordenadora do projeto, Heloísa Buarque de Hollanda, professora emérita de Teoria Crítica da Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ, conhecida como ECO, e diversas vezes Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ. Ela destaca que é raro, na academia, o desenvolvimento de espaços permanentes de diálogo, capacitação e criação compartilhada entre segmentos culturais diversificados. “A universidade não chega a estar trancada em uma torre de marfim, mas digamos que ela está trancada em um condomínio de luxo na Barra, daqueles cheios de vigias", avalia Heloísa, com uma pitada de humor.

Os artistas e agentes culturais que participam do curso gratuito de extensão universitária são carinhosamente chamados de “quebradeiros”. O programa da Universidade das Quebradas é voltado para cinco áreas de produção cultural: literatura, artes visuais, teatro, dança e música. “É um regime de trocas. Trazemos artistas, intelectuais e produtores culturais das periferias para a universidade, onde eles dão aulas para nós, professores, compartilhando suas experiências artísticas. E também recebem aulas de diversas disciplinas, como antropologia, sociologia, filosofia, literatura, história da arte, português e oficina da palavra”, explica a pesquisadora.

Participam do projeto professores experientes da universidade, como a antropóloga Ilana Strozemberg; a coordenadora adjunta Numa Ciro, que é psicanalista, performer e pesquisadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), e diversos professores convidados, como a historiadora e antropóloga Lília Moritz Schwarcz, da Universidade de São Paulo (USP) e da Princeton University; os professores de literatura brasileira na UFRJ Eucanaã Ferraz e Eduardo Coelho; e a socióloga Silvia Ramos, especialista em violência, da Universidade Cândido Mendes (Ucam).

Diálogos culturais da cidade maravilhosa

O diretor de cinema e 'quebradeiro' Marcelo
Ostachevski: 
participação no Coletivo de
Audiovisual
das Quebradas (Foto: Divulgação/UFRJ)

Os “quebradeiros” passam por um processo seletivo para ingressar no projeto, que oferece atividades de abril a dezembro. Uma vez por semana, eles vão ao campus da Faculdade de Letras, na Ilha do Fundão, para um dia inteiro de imersão acadêmica. “Lançamos anualmente um edital para seleção dos ‘quebradeiros’ porque queremos receber lideranças com trabalhos artísticos já consolidados nas suas respectivas periferias. Mesmo que eles não tenham concluído o ensino formal, os candidatos enviam um portfólio descrevendo sua atuação artística e uma carta de apresentação. Depois, há uma entrevista. É parecido com um processo seletivo para o mestrado, mas sem a exigência de diploma”, diz Heloísa.

Na edição de 2016, o projeto recebeu inscrições para 70 vagas. A aproximação dos “quebradeiros” com o mundo acadêmico costuma abrir novos horizontes. “A entrada na universidade depois da participação no projeto é quase automática. Depois de um ano de trabalho, eles perdem o receio da instituição e passam a considerar que pertencem ao universo acadêmico”, conta. “Alguns entram posteriormente na universidade por cotas, e dizer que os alunos cotistas não acompanham o ritmo de aprendizado é totalmente mentira.”

Para facilitar a inserção dos “quebradeiros”, Heloísa organizou a “chegança”, uma estratégia educativa de boas-vindas. “Eles chegavam com muito medo e só se soltavam no segundo mês. Então, logo no início do curso, deixamos que os velhos alunos recebam os novos. É uma passagem de bastão entre pares. O professor não abre o bico enquanto eles tomam um café e socializam”, explica a pesquisadora. Depois de quebrar o gelo com os novos alunos, o curso segue adiante, com uma bibliografia de ponta. Obras como Casa-grande e senzala e Sobrados e mucambos, ambas de Gilberto Freyre, norteiam discussões sobre a formação do povo brasileiro. O romance O cortiço, de Aluísio Azevedo, também está entre os livros recomendados e motiva o debate sobre as questões da periferia. “No final de 2016, os alunos terão que fazer uma releitura de O cortiço nos dias atuais, seja encenada, escrita ou musicada”, adianta.

Sediado, desde março de 2014, na Faculdade de Letras, o projeto experimental de extensão tem como base o conceito de ecologia dos saberes. “O saber da universidade está inserido em um sistema, em que o saber formal deve dialogar com o saber informal, que é popular, mais intuitivo, mas nem por isso menos importante. Não há uma hierarquia entre as culturas. Dizer que a cultura das periferias é menos desenvolvida é errado”, destaca. “Assim como as comunidades que não tiveram oportunidade de receber educação formal superior mostram uma forte carência em relação ao acesso ao conhecimento e à produção intelectual das universidades, também a comunidade acadêmica denuncia carência similar em relação ao acesso a outros saberes e formações culturais fora da universidade”, completa.

Heloisa teve a ideia de criar a Universidade das Quebradas em 2009, depois de pesquisar por bastante tempo a cultura das periferias. “Percebi que a produção cultural das periferias é muito sólida e específica, mas que a academia não costuma ouvi-la. O hip hop, por exemplo, é objeto de tese de antropólogo, mas os acadêmicos não aprendem de fato que tipo de visão de mundo e de cidade ele propõe. Por isso a proposta não é ir até as comunidades. É trazer as comunidades para dentro da universidade para que a academia ouça essas culturas. Meu objeto de estudo, na realidade, é a universidade. Mais precisamente, como deve ser a universidade do século XXI, porque as periferias vão muito bem, não precisam da academia, mas a universidade precisa se abrir às periferias”, afirma.

O programa da Universidade das Quebradas é voltado para
cinco áreas de produção cultural: literatura, artes visuais,
teatro, dança e música (Foto: Divulgação/ UFRJ)

Ela lembra que a cultura digital vem colocando em xeque a exclusividade da figura do especialista. “A Internet permite que o público em geral, não especialista, pesquise suas dúvidas na rede e tenha acesso a um conhecimento técnico que antes estava restrito aos acadêmicos. Os motores de busca acabaram com o ‘superespecialista’. Nesse cenário das novas tecnologias, é necessário um novo modelo de produção do conhecimento, que seja colaborativo. Isso vale para a necessidade de uma maior interação entre a cultura da academia e a cultura popular”, ressalta.

Para a professora, fazer essa tradução cultural colaborativa é o desafio que impulsiona o seu projeto. “Não estamos acostumados na universidade a trocar informações nem com o colega, que tem pós-doutorado, imagine com alguém que não tem o secundário. É o projeto da minha vida”, pondera. A equipe da Universidade das Quebradas conta ainda com a participação regular da coordenadora adjunta Numa Ciro, performer e psicanalista, e das professoras da Faculdade de Letras da UFRJ Georgina Martins e Martha Alkimin.

Uma viagem sensorial por um Rio de palavras

As atividades de Heloísa não se resumem, no entanto, às quebradas. Ela também pesquisa o impacto das novas tecnologias digitais na produção e no consumo culturais. Outra vertente do seu trabalho é o Laboratório da Palavra, um espaço experimental de pesquisa, criação e produção editorial em base digital e multiplataforma. Sediado igualmente na Faculdade de Letras, o laboratório permite o desenvolvimento de experiências que associam os recursos da tecnologia ao mundo das palavras, em parceria com o Laboratório de Metodologias Computacionais da Engenharia (Lamce) e o Laboratório de Realidade Virtual (Lab 3D) – ambos da Coppe, como é conhecido o Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da UFRJ. 

“A ideia deste projeto é ser um laboratório experimental de pesquisa, criação e editoração, com cursos, oficinas, palestras, seminários e fóruns de discussão. Ou seja, um espaço que articule todo o ecossistema que envolve a produção literária, desde a criação do texto até sua chegada ao leitor, seja via crítica, livrarias, sites, e-commerce ou bibliotecas”, resume Heloísa, que foi contemplada pela FAPERJ, com o edital Apoio a Projetos de Pesquisa na Área de Humanidades.

Um dos desdobramentos do Laboratório da Palavra é a instalação PalavRio, montada no Espaço Coppe, na Ilha do Fundão. Com curadoria de Heloísa, ela foi concebida a partir de um poema de André Vallias para apresentar um mapa fonético da cidade, com 64 palavras verbalizadas por moradores de diversas regiões do Rio e do seu entorno. Cada palavra é acompanhada por citações literárias de escritores que ajudaram a contar a história da cidade, como Lima Barreto, Machado de Assis e João do Rio.

Em homenagem à cidade, um conjunto de softwares e sensores leva o visitante a uma imersão no som de palavras com a terminação “r i o”, que compõem a obra de Vallias. “É interessante ver como a mesma palavra é pronunciada de formas diferentes por pessoas que moram nas diversas áreas do Rio, Zona Sul, Norte, mais velhas ou jovens, de profissões diferentes”, comenta Heloísa. Aberta ao público, de segunda a sexta-feira, das 13h às 16h, a instalação fica no nicho 4 do Espaço Coppe Miguel de Simoni, no I-2000, entre os blocos C e D, no Centro de Tecnologia, na Cidade Universitária.

Mantendo uma rotina de intensa produtividade mesmo após a sua aposentadoria das salas de aula de Letras e Comunicação, Heloísa é autora de uma vasta produção bibliográfica, que inclui a coleção de 36 títulos Tramas urbanas – uma reflexão sobre fenômenos socioculturais e estéticos em curso nas periferias das grandes cidades brasileiras –, Macunaíma, da literatura ao cinema; 26 poetas hoje; Impressões de viagem; Cultura e participação nos anos 60; Pós-modernismo e política; O feminismo como crítica da cultura; Guia poético do Rio de Janeiro; Asdrúbal Trouxe o Trombone: memórias de uma trupe solitária de comediantes que abalou os anos 1970; e Escolhas, uma autobiografia intelectual.

Atualmente, ela está finalizando duas obras em formato multimídia: Os marginais – Brasil nos anos 1970 e Cultura em Transe – Brasil nos anos 1960. Documentos, clipping de notícias, arquivos sonoros, áudios de entrevistas, vídeos e imagens foram minuciosamente reunidos para ajudar a recompor a história das décadas de 1960 e 1970. Heloísa entrevistou pessoalmente artistas e intelectuais de peso, como Zuenir Ventura, Cacá Diegues, Ferreira Gullar, Nelson Motta, Gilberto Gil, Zé Celso e muitos outros.

Os dois livros foram pensados a partir do conceito de interatividade, com som, imagem e movimento. “Ao clicar em AI-5 [Ato institucional nº 5], por exemplo, é possível ouvir a voz do então presidente Costa e Silva falando à população sobre aquele momento político”, explica. Com o design de Christiano Menezes e Luiz Stein, eles estão em fase final para o lançamento. “O objetivo é democratizar a venda dessas obras pela Internet, que em breve estarão disponíveis no site da Amazon e também no da Apple, por apenas R$ 1,99”, conta. Mais uma contribuição da incansável Heloísa aos estudos da cultura brasileira.

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