O seu browser não suporta Javascript!
Você está em: Página Inicial > Comunicação > Arquivo de Notícias > Quando a loucura encontra a literatura
Publicado em: 06/11/2008
ATENÇÃO: Você está acessando o site antigo da FAPERJ, as informações contidas aqui podem estar desatualizadas. Acesse o novo site em www.faperj.br

Quando a loucura encontra a literatura


Débora Motta

  Divulgação

    

  Lima Barreto conviveu com
  a loucura desde a infância


 

A loucura é um mal ainda incompreendido pela sociedade, mas já rendeu bons frutos para as artes. No livro Literatura da Urgência – Lima Barreto no domínio da loucura (ed. Annablume, 2008), a jornalista e pesquisadora Luciana Hidalgo analisa a relação entre a insanidade mental e a produção literária a partir do livro Diário do hospício, escrito por Lima Barreto em 1919-1920, período de sua internação no Hospital Nacional dos Alienados, que funcionava no Palácio Universitário da atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), campus da Praia Vermelha. A autora percorre a história da insânia e constrói o conceito "literatura da urgência" para definir o estilo "narrativa-limite", produzida em estados psíquicos emergenciais. Carioca, Luciana Hidalgo trocou as redações de grandes jornais, como O Globo e Jornal do Brasil, para se dedicar com exclusividade à carreira acadêmica. Doutora em literatura comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) – onde foi bolsista Nota 10 e desenvolveu a tese que daria origem ao livro sobre Barreto – e atualmente com bolsa de Pós-Doutorado da FAPERJ na mesma universidade, ela também escreveu sobre a interface entre loucura e arte em Arthur Bispo do Rosário – O senhor do labirinto (ed. Rocco, 1996), livro que trata da vida de um paciente psiquiátrico que se tornou artista plástico, em 1938. Em entrevista por e-mail ao Boletim da FAPERJ, ela passa a limpo suas obras, fala da importância de Lima Barreto para a literatura brasileira e de sua internação –  época pouco conhecida da vida do autor, que enfrentou o estigma de maldito durante toda a sua trajetória, por ser negro, de origem humilde e, mais tarde, considerado louco.

Boletim da FAPERJ – Seu primeiro livro foi  Arthur Bispo do Rosário - O senhor do labirinto, biografia de um paciente psiquiátrico, também artista plástico, que bordou e escreveu no hospício onde esteve internado durante 50 anos. Como surgiu o desejo de pesquisar a obra de Lima Barreto?

Quando escrevi o livro Arthur Bispo do Rosário – O senhor do labirinto (ed. Rocco), eu li Diário do hospício, de Lima Barreto, e inclusive o citei. Vislumbrei uma proximidade entre Bispo e Lima, por serem ambos de origem humilde, mulatos, tendo ingressado no Hospital Nacional dos Alienados na época do Natal (Lima em 1919, Bispo em 1939) e encontrado formas muito pessoais e artísticas de sobrevivência em meio à homogeneização de sentidos imposta pela instituição psiquiátrica. Os dois personificavam a interseção dos clichês preconceituosos de seu tempo: eram pobres, mulatos, a-sociais. Eu quis então investigar a trajetória de Lima para tentar compreender como um dos maiores escritores da literatura brasileira foi internado duas vezes num hospício como indigente, sem ter um diagnóstico psiquiátrico, apenas devido ao alcoolismo – e verificar como essa experiência manicomial influenciou a sua escrita.

Boletim da FAPERJ Existe diferença entre o estilo literário de Lima Barreto, produzido antes da sua internação no Hospital Nacional dos Alienados (quando escreveu livros como Recordações do escrivão Isaías Caminha e Triste fim de Policarpo Quaresma), durante a internação (Diário do hospício) e depois dela?

O que impressiona justamente é que não há uma diferença nítida. Era de se esperar que houvesse, mas o estilo enxuto, conciso e ‘moderno’ de Lima Barreto já dava o tom do primeiro livro, Recordações do escrivão Isaías Caminha, e continuou até o final da sua produção, sobretudo em O cemitério dos vivos, romance escrito a partir das anotações do diário. A questão da loucura assombrou o escritor desde a infância, já que seu pai foi funcionário da Colônia dos Alienados da Ilha do Governador, levando toda a família a morar numa casa dentro do domínio do manicômio (o que era comum na época). Lima, que estudava num colégio de meninos brancos e ricos com a ajuda do padrinho, o visconde de Ouro Preto, passava os fins de semana em casa, ou seja, no hospício. Para piorar essa situação, seu pai teve um surto psicótico anos depois, sem cura. Ou seja, o tema loucura esteve sempre presente em sua vida e se espraiou por sua obra, fosse num pequeno personagem de Recordações do escrivão Isaías Caminha ou na composição do protagonista Policarpo Quaresma, que vai parar no hospital psiquiátrico pelo excesso de idealismo. Durante a internação de Lima, o tema obviamente retornou com mais vigor, sendo o cerne da escrita do diário: uma escrita contaminada pelo círculo de ritos e vícios do hospício, cujo conteúdo era basicamente sua experiência lá. Como se trata de um diário, a escrita é por vezes fragmentada, trazendo um pouco mais da emoção bruta, mas também sai da confissão para a crônica, passando por uma espécie de ‘tratado’ sobre a loucura e pelas anotações para um futuro romance. Só que a lucidez impera nos escritos, já que o autor entrava alcoolizado e, um dia depois, voltava a ficar sóbrio. Assim, era capaz de usar elementos daquela realidade para a sua literatura. Há descrições muito completas, literárias, sobre os delírios dos internos, que certamente não constam de nenhum prontuário médico da época. Diário do hospício tem também a função de importante documento histórico da psiquiatria – sob a rara ótica do paciente.

Boletim da FAPERJ – Depois de muitas pesquisas sobre o tema, como você vê a relação entre loucura e literatura?

É importante investigar até que ponto a loucura ou apenas a proximidade da insânia influencia a escrita de um autor quando este absorve a função de louco, ou pelo menos de paciente psiquiátrico. Bispo, por exemplo, diagnosticado como esquizofrênico, tinha delírios considerados místicos, já que assegurava fazer toda a sua obra (bordados, assemblages e objetos pontuados por escritos) para apresentá-la a Deus no dia do Juízo Final. O que une Bispo e Lima é, sobretudo, a utilização da escrita e da arte para a subversão de uma situação-limite, dominada pela emergência. Bispo desfiou o próprio uniforme do hospício e reutilizou o fio para seus bordados, ou seja, desconstruiu o poder da psiquiatria, simbolizado pela vestimenta padronizada, e utilizou a matéria-prima destituída de seu significado psiquiátrico para construir um outro mundo, mais utópico, feito de ouro e sem doença mental, como anunciava. Lima Barreto, no centro do desconforto no hospício, recorreu ao próprio, enfrentou-o, em suas idiossincrasias, e se deixou imbuir do entorno para, num primeiro momento, pseudomimetizá-lo. Em seguida, criticá-lo, delatá-lo, inscrevendo no diário suas inúmeras denúncias em relação ao poder dos médicos e à ineficácia do tratamento da loucura. As relações entre loucura e literatura, nos dois casos, pode ser entrevista na urgência das frases-sínteses de um e outro: enquanto Lima escreveu no diário Ah! A Literatura ou me mata ou me dá o que peço dela, Bispo bordou a seguinte frase num estandarte: Eu preciso destas palavras – escrita. Para ambos, as palavras eram prementes, utilitários emergenciais. Na fronteira entre a esperança e o desespero, a vida e a morte, num estado de exceção, eles compuseram obras que esgarçaram os limites do cotidiano e o transcenderam. Se é impossível fazer o elogio da loucura, com toda a dor e o desespero que autores como Lima Barreto expuseram ao vislumbrá-la, pode-se ao menos fazer a apologia da literatura do autor sobrevivente.

Boletim da FAPERJ - Pobre, negro e visto como louco, Lima Barreto viveu sob o estigma do preconceito durante toda a sua vida. Como você analisa o reflexo do preconceito social na sua obra literária?

A questão que se coloca em relação a Lima Barreto até hoje é: ele foi marginalizado, ou ele próprio se marginalizou? Talvez a explicação esteja na combinação dos dois. Ele buscou tanta autonomia intelectual, evitando fazer concessões, não participando das mais importantes panelas literárias da época, que terminou realmente à margem da intelectualidade dominante na belle époque carioca. Além disso, a virulência de muitos de seus escritos, com denúncias dos esquemas de pistolões e outras críticas, contribuiu para o seu isolamento. Ou seja, além de a-social, de já não pertencer à típica sociedade burguesa da época, tornou-se uma espécie de a-intelectual, encarnando a negação do intelectual – não do intelectual propriamente, mas da intelectualidade em relação ao seu tempo, aquela mais convencional, que era bajulada por seus pares, lida e bem recebida nos salões da sociedade. Ao desmistificar modelos sociais, intelectuais, políticos e econômicos da época, Lima se tornou o antiexemplo, o incômodo. Ao se apresentar por vezes alcoolizado, sujo e maltrapilho, chocava uma sociedade que vivia, em vários aspectos, de acordo com padrões europeus de comportamento. Com isso, o autor teve muitas dificuldades para publicar e ser lido por seus contemporâneos. A sua literatura da sinceridade incomodou muito e prejudicou bastante sua recepção crítica. Até hoje é muito importante que se possa reler a obra de Lima sem o olhar do preconceito.

Boletim da FAPERJ – Você criou o conceito "literatura da urgência". Pode explicar essa definição?

O conceito alude a uma literatura que se faz necessária, em caráter emergencial, criada exclusivamente para fazer frente a uma situação determinada. Chamo de narrativa-limite, por ser uma escrita decorrente de uma situação-limite vivida pelo autor. É uma escrita do extremo, que funciona como elemento de transcendência de um cotidiano que massacraria o escritor caso lhe fosse negado o direito à experiência literária. A princípio pode-se pensar que grandes escritores da história da literatura escreveram por urgência, no mínimo por angústia, um dos norteadores de boa parte da história das artes. Mas a literatura da urgência vai além nesse preceito ao delimitar o momento exato da escrita como emergência, diferentemente do escritor que escreve no dia-a-dia comum, sem limitações que o impeçam de se libertar de uma situação opressora. Desta forma, a angústia e outras emoções ou idéias que geram a literatura em condições normais de vida pairam como nota de fundo, inspirando um questionamento da existência como um todo. Já a literatura da urgência refere-se unicamente ao estado que impele o sujeito ao risco, à fronteira limítrofe com a morte, seja por meio da loucura, de uma doença terminal, de uma situação de cárcere ou de outras experiências radicais. Seria, portanto, possível alargar o estudo deste tipo de literatura, incluindo-se no conceito, por exemplo, parte da obra de Jean Genet, escrita no dia-a-dia de um presídio francês, como reação à sociedade que o aprisionava; ou Cytomégalovirus, o diário da hospitalização de Hervé Guibert, escritor francês, morto de Aids em 1991, que converteu a experiência de soropositivo internado no hospital em obra literária. Ou mesmo o Diário de Anne Frank. Nesses casos e no de Lima, o exercício literário funcionou como reforço de uma subjetividade ameaçada diante de uma situação-limite. E alguns desses escritos têm ainda inegável qualidade estética.

Boletim da FAPERJ – Como foi a experiência de editar e organizar o livro  A arte da urgência (ed. Cultural Office, 2006), no qual reuniu poemas e pinturas de usuários de serviços de saúde mental em Curitiba, em parceria com Mônica Drummond?

Um dia, a produtora cultural Mônica Drummond me falou de um certo caderno de poemas de um usuário de serviços de saúde mental de Curitiba. Ela me enviou e fiquei impressionada com o vigor da poesia de Loriel da Silva Santos, que num poema fazia a seguinte pergunta: "O que te assusta no mundo do insano?" Rendida a achar respostas a essa pergunta, resolvi ler os versos com cuidado e, dali, fazer uma seleção (com Mônica) para o livro A arte da urgência, costurado com pinturas de outros usuários. Mas os poemas são todos do talentoso Loriel, que já faz parte do atual sistema de tratamento psiquiátrico, antimanicomial, ou seja, nunca ficou no regime de manicômio fechado. Lendo um de seus poemas, uma estrofe chama atenção: "E por mais morte que seja/ A palavra sempre viaja/ Retoma consigo/ A construção do amanhã." Para Loriel, bem como para Bispo e Lima, a palavra alcança status extraordinário a ponto de garantir o futuro e perfazer um ciclo morte-renascimento que alça a arte e a literatura a um patamar sublime. A morte é antes de tudo íntima da escrita. E é esta intimidade com o extremo que parece levar a literatura a um limite inexplorado.

Boletim da FAPERJ – Como você avalia a contribuição de Lima Barreto para a literatura brasileira?

Lima quis tudo dizer, sem filtragem, e a sua literatura é a superexposição de si mesmo. Ele criou personagens-reflexos de si nos principais romances (Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma, Vida e morte de M.J.Gonzaga de Sá e O cemitério dos vivos), escrevendo o que hoje se intitula autoficção, ou seja, uma mistura de dados autobiográficos com uma roupagem ficcional. Isso irritou muito os críticos da época, que zelavam por uma divisória nítida entre vida e obra. Lima ousou ao se expor nas próprias obras de ficção. Pois, ao falar de si, falava automaticamente das questões mais nevrálgicas da sociedade da época, tentando talvez uma redenção de si mesmo. Acabou criando uma literatura-alforria que transgrediu códigos e esgarçou limites entre vida e obra, pele branca e negra, pobreza e riqueza, ignorância e cultura, literatura popular e erudita, lucidez e loucura. Fosse na ficção, nas crônicas ou no diário, o que interessava era dizer o indizível, o que a princípio não se poderia dizer, dado o caráter socialmente inaceitável do seu conteúdo. Ao forçar todos os limites do que poderia ser dito e escrito na belle époque brasileira, Lima deu uma contribuição única à literatura brasileira.

Boletim da FAPERJ – Qual foi o motivo que a levou a investir na carreira acadêmica e se afastar da rotina de trabalho nas redações?

Depois do lançamento do meu primeiro livro, tive vontade de me aproximar mais da literatura, de forma a aprofundar mais leituras e estudos. Adoro a rotina da redação, mas é difícil conciliar outras atividades com a exigência do jornalismo diário, por uma simples questão de falta de tempo. Tive então que optar, ou não poderia me dedicar ao mestrado e ao doutorado em Letras. Mas tanto a experiência jornalística quanto a formação acadêmica influenciam igualmente o meu trabalho, pois tento aliar a escrita clara e fluente que aprendi no dia-a-dia dos jornais com o rigor da pesquisa. Graças à FAPERJ consegui fazer a opção de sair do jornalismo (na época trabalhava no Prosa & Verso do jornal O Globo) para me dedicar ao doutorado (com a bolsa Nota 10), que rendeu esse livro. Agora posso dar continuidade à carreira acadêmica, com a bolsa de pós-doutorado. Agências de fomento como a FAPERJ possibilitam realmente a dedicação exclusiva à pesquisa, financiando sonhos de estudiosos e pesquisadores.

Compartilhar: Compartilhar no FaceBook Tweetar Email
  FAPERJ - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
Av. Erasmo Braga 118 - 6º andar - Centro - Rio de Janeiro - RJ - Cep: 20.020-000 - Tel: (21) 2333-2000 - Fax: (21) 2332-6611

Página Inicial | Mapa do site | Central de Atendimento | Créditos | Dúvidas frequentes