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Publicado em: 30/04/2008
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O culto aos santos negros entre os escravos no Brasil colonial

Vinicius Zepeda

 Acervo Nossa Sra. do Rosário dos Pretos  

    
  Santa Efigênia: difusão de seu culto serviu
  para controlar os negros no século XVIII 

Efigênia, filha dos reis da Etiópia, país do continente africano, havia sido prometida em casamento a um primo, conforme a tradição da época. Entretanto, a princesa, que depois de haver sido convertida ao cristianismo pelo apóstolo Mateus decidira devotar sua vida a Deus, recusou-se a subir ao altar. Em conseqüência, Mateus foi morto. Efigênia manteve-se virgem, abdicou de sua riqueza e construiu um convento, onde viveu até a morte. Histórias como essa foram difundidas pelos frades carmelitas no Brasil do século XVIII como forma de catequização dos escravos e libertos negros da Colônia. Segundo o professor de história do ensino médio no Instituto de Aplicação da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Anderson José Machado de Oliveira, doutor pela Universidade Federal Fluminense (UFF), "com a cristianização daqueles que compunham o maior contingente de escravos da América portuguesa, os religiosos visavam ampliar sua capacidade de servir à metrópole e obter vantagens para a ordem". E sobretudo manter essa população escrava sob controle, tanto ideológica quanto politicamente, incentivando a submissão à ordem vigente.

Oliveira tem se dedicado aos estudos sobre religiosidade no Brasil colonial desde os tempos do mestrado. O assunto foi também tema de sua tese de doutorado, contou com o apoio da FAPERJ e deu origem ao livro Devoção negra – santos pretos e catequese no Brasil colonial, já disponível nas livrarias. Em suas páginas, ele conta que o processo de catequese de escravos e libertos desenvolvido no país pelos frades da congregação religiosa Ordem de Nossa Senhora do Carmo se dava por meio da difusão da história e do culto aos santos negros Santa Efigênia e São Elesbão, e ultrapassou os limites do Rio de Janeiro, chegando também às cidades mineiras de Mariana e Villa Rica (atual Ouro Preto).

"Numa sociedade em que o status social se refletia na distância estabelecida pelo trabalho, era essencial garantir o controle político e ideológico sobre o segmento da população que era essencial para o funcionamento da economia local, mas que também era o que mais crescia numericamente", explica Oliveira. O historiador destaca o papel da Igreja na construção dos modelos de santos a serem apresentados para a população.

  Acervo do autor 
            
  Segundo carmelitas, São Elesbão estendeu
  o reino cristão da Etiópia ao Mar Vermelho

Segundo Oliveira, apesar de a maioria dos santos de maior devoção da população negra do país daquela época serem ‘de cor’, nem todos o eram. Ele cita como exemplo a controvérsia gerada pelo culto à Nossa Senhora do Rosário. "Como não há uma explicação convincente, o assunto ainda suscita polêmicas entre os historiadores. Ela é branca. Mesmo assim, foi utilizada por uma série de religiosos para a conversão dos negros", explica. "Ela teria sido responsável pela vitória sobre os turcos na batalha de Lepanto, que libertou as terras cristãs no Oriente, em 1571. Parece que foi segundo essa premissa que a santa serviu para a catequese dos escravos africanos no Brasil", acrescenta o historiador.


Outro exemplo, segundo ele, foi citado pelo antropólogo Luiz Mott, da Universidade Federal da Bahia (UFB). "Ele fala sobre a quase chegada de Rosa Egipcíaca ao altar no século XVIII", lembra. Segundo Mott, que se baseia no processo de Inquisição para desvendar a vida de Rosa, ela havia sido escrava em Minas Gerais e convertida ao catolicismo. "Na época, alguns religiosos tentaram colocá-la como modelo de santidade para facilitar a conversão dos negros. Entretanto, num dado momento, o poder de suas visões se tornou incontrolável, segundo a ótica da Igreja, e ela acabou condenada pelo tribunal da Inquisição", afirma. E explica: "A Igreja procura controlar os fenômenos para que eles não fujam de sua ortodoxia. No caso de Rosa, a partir de um dado momento, esse controle acabou sendo perdido", explica.

Sincretismo religioso não era dissimulação de escravos para agradar senhores

O relato da vida de São Elesbão segue a mesma trajetória de Santa Efigênia. Natural da Etiópia, ele foi o 47 neto do rei Salomão e da rainha de Sabá, imperador no século VI, que mais tarde se torna cristão. "Foi creditada a Elesbão a extensão do reino cristão da Etiópia até o lado oposto do Mar Vermelho, impondo-se aos árabes e aos judeus do Iêmen", fala o historiador. Porém, o fato é que o culto à Santa Efigênia ganhou maior força junto aos negros na época. "Nas culturas africanas, a figura feminina tem um papel importantíssimo, o que explica a maior adoração e um culto mais difundido da figura de Santa Efigênia", esclarece o historiador.

Vinicius Zepeda 

    
 Oliveira: " sincretismo não foi
 uma dissimulação dos negros"
Nesse sentido, cabe destacar o projeto pensado pela Igreja católica de difusão das duas santidades por meio da Ordem do Carmo e da figura do frei José Pereira de Santana, o idealizador desse processo de conversão voltado aos negros. Mas Oliveira lembra a distância entre o que foi pensado e o que foi realizado no Brasil, destacando a sobrevivência da cultura africana por meio do sincretismo religioso – a combinação de elementos da cultura religiosa africana com os daquela que lhes era imposta pelo colonizador. "O processo gera um terceiro elemento, em que as características próprias de ambas as culturas são identificáveis de maneira separada", acrescenta Oliveira.

Outro exemplo da combinação dos elementos da cultura africana com a do colonizador europeu corresponde às feições de São Elesbão descritas pelos religiosos da época. Segundo eles, o santo deveria ser pintado ou esculpido da seguinte forma: "preto na cor do rosto e das mãos, que são as partes do corpo que lhe divisam nuas; cabelo revolto, à semelhança daquele com que se ornam as cabeças dos homens de sua cor; as feições parecidas às dos europeus, nariz afilado, forma gentil, idade de varão, cercilho de religioso, coroa de sacerdote, hábito de carmelita."

O historiador discorda da visão de que o sincretismo tenha sido uma dissimulação dos escravos para agradar seus senhores. "Pelo que posso perceber, as duas práticas convivem juntas e o praticante tem a noção de venerar tanto seu santo de origem quanto o imposto pelo colonizador. Quem vê conflito é a Igreja Católica, para o fiel não há este problema", afirma. Anderson Oliveira lembra ainda que, no século XVIII, o catolicismo era a religião oficial da Colônia. "Neste ponto, o projeto idealizado por frei Santana não foi completamente vitorioso. O culto aos dois santos foi bastante difundido, mas a vivência de seus devotos negros, na verdade, se dava sob as apropriações de um sincretismo religioso. Ou seja, o processo de catequização dos escravos sofreu interferência direta e foi relido conforme a vivência desses povos", explica.

Apesar de lecionar história no ensino médio, Oliveira se manifesta contra o ensino obrigatório de religião nas escolas públicas do estado, mesmo sendo um estudioso do tema religiosidade no país. "Ainda que o estudante possa escolher a religião que quer aprender na escola, considero a medida um retrocesso. Nosso Estado é laico (não religioso) e o espaço da escola pública não é esse", afirma. O tema da história da religiosidade no Brasil colonial, no entanto, ainda deve render nas mãos do historiador. "Por meio do edital Primeiros Projetos, da FAPERJ, estou estudando agora a devoção a outros santos pretos no período, como São Benedito e Santo Antônio de Categeró", conclui o historiador.

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